BOP!

Victor E. Folquening escreve, você lê e diz alguma coisa

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

Grupo de gestores para soluções estratégicas nas Faculdades Integradas do Brasil

segunda-feira, julho 31, 2006

O AVATAR # 5! Rocky Ombro numa intriga de inveja, sexo, morte e senso comum

Episódio de hoje: “Em que parte do esquema entra... o crime?” - parte I.


O alto comando da polícia, preocupado com o nível da educação em nosso país,
exige agora que todos os chefes de delegacia voltem a estudar. O tenente
Hernandez Lopez não conseguiu se matricular em nenhuma das 272 “instituições de
ensino superior” da cidade. Por isso passa dois dias por semana estudando
Administração no Centro Universitário de Cornélio Procópio, o UniCórnio. Ele
está se especializando em marketing e pretende aplicar seus novos conhecimentos
na 77a DP. A decisão terá conseqüências trágicas.

“Está vendo esse esquema que desenhei atrás do Boletim de Ocorrências, srta. Gavirova?”, explica o empolgado Lopez para a resignada secretária, “Esse desenho agora vai guiar minha vida. Desse lado nós temos nossas potencialidades”, e risca um enorme círculo na palavra POTENCIAL. “Desse outro lado, nossos desafios”, e desenha uma flecha apontada para DESAFIO, “Embaixo, as coisas que representam obstáculos para nosso sucesso”, e sublinha a expressão MAU OLHADO. “No meio, o resultado que esperamos conquistar!” E rabisca um losango na parte vazia do papel.
“Muito inteligente, tenente”.
“Chama-se Administração Moderna. Realmente é difícil de acompanhar, pois se trata de ciência avançada. Sem dúvidas, foi uma decisão brilhante do reitor Tibúrcio Ronquefuça tirar a aula inútil de Arte do currículo do UniCórnio e substituir por Técnicas de Marketing Pessoal”.
“Outros tempos, né, tenente?”. Galinka Gavirova não ousava contestar o resultado de árduo esforço intelectual, embora secretamente odiasse os métodos administrativos modernos – foi com eles que o ex-governo comunista de Porto Alegre confinou seus pais a uma garrafa.
“Isso mesmo. Estado, polícia, igreja, museus, cemitérios, família... já chegou a hora de todas as instituições entenderem que o segredo do sucesso é uma administração racional e produtiva, como na iniciativa privada”.
Lopez é um homem de estações. Na primavera, fez reformas na delegacia inspiradas num curso de numerologia:
“Não acredito que está me demitindo! Eu trabalho o dia inteiro, acumulei as funções de policial, advogado, promotor, carcereiro, escrivão e ganho a metade do salário da secretária”, bradava o agente Geraldino Bocaiúva, ex-combatente, pai de 6 filhos e presidente honorário do Clube dos Hemofílicos. “Só pode ser porque sou o único negro desse departamento”.
“Eu não sou racista! Pensa que sou algum tipo de judeu ou algo assim?”, revoltou-se Lopez. “O problema são as letras do seu nome: somando as consoantes dá 8, péssimo para prosperidade em empresa cuja atividade profissional começa com D”.
A numerologia não deu muito resultado, o que era previsível: Hernandez Lopez havia escolhido a carreira policial justamente porque reprovou em matemática várias vezes na escola.
“Ouvi dizer que o chefe vai implantar a teoria dos cinco ‘S’ por aqui”, cochichou o agente Linus, enquanto socava a emperrada máquina de café-no-isopor. Cassius fez uma careta: “Ai, ai, tomara que ele não tenha uma recaída com feng shui”.
No verão passado, o tenente mudou os móveis da delegacia para que o ambiente adquirisse a “correta harmonia da Justiça”. Na nova disposição, os agentes ficavam dentro das celas e os presos sentados em L na porta da frente.
Gavirova colocou a cabeça no vão da portinhola:
“Ei, rapazes, o delegado está chamando todos para o escritório”.
Em pé sobre a mesa de reuniões, Hernandez Lopez se apoiava no ombro de Peter Folk, o estabanado detetive que não tirava o sobretudo amarrotado sequer no verão e por isso mal conseguia se equilibrar no móvel de fórmica.
“Colegas!”, começou o tenente, depois de pigarrear e chamar a atenção de um preso que não olhava para o centro do escritório durante o prelúdio do discurso. “Esse será um ano muito bom para todos na delegacia. Ontem eu tive uma conversa com o Superintendente Geral da Polícia, o doutor Frangoberto Pintassilgo...”
TODOS: “Venha a nós, Senhor”.
“Ele prometeu aumentar a área do refeitório, adiantar o plano de carreira dos...” Quarenta minutos de blá-blá-blá depois:
“...e como parte dessas mudanças, estamos nos qualificando para servir melhor aos interesses do doutor Pintassilgo...”
TODOS: “Venha a nós, Senhor”.
“...e até mesmo da comunidade. Por isso quero aplicar todas as boas técnicas de administração e marketing nesse novo projeto. Hoje vou dar um exemplo de como podemos valorizar profissionais leais ao departamento. Folk, acorde!”
Alguns dos presentes se entreolharam com admiração. “Chegou a vez do grande Folk! Você é o Number One dessa nave!”, aplaudiu o novato Colimério Lobster, um ex-aluno de Folk na academia que tinha três paixões: Star Wars, Star Trek e adulação.
Até os presos gostavam do camarada. “Peter, a minha pena/ eu vou curtir,/eu tô aqui só para cumprir”, cantou na carceragem Vivaldino Jaburu; detido, xingado e espancado pelo detetive, mas que atribui a ele “a motivação para continuar acreditando que as coisas podem ser diferentes nesse país”.
Já outra facção dos funcionários torceu o nariz e iluminou a sala com sorrisos amarelos.
“O arrogante Peter!”, pensou Xana, policial responsável por fotografar cenas de crime. Há tempo ela não tem mais paciência para as piadinhas do colega. Sente-se acuada, pois perdeu a companheira de patrulha Rosimeri – que se descobriu sem nenhum talento para trabalhar na Justiça e por isso foi dar aula de Direito no UniCórnio.
“Rosimeri não criticava as palavras erradas dos meus B.O. nem dizia que minhas fotos são parecidas com chapas de raio X”, diz para seus botões.
Na verdade, a míope Rosimeri não é muito amiga da língua portuguesa. Ninguém precisava ler até o fim para saber de quem era o cartão na árvore natalina do escritório: “Feliz, natal e Prospero ano que entra sáo, os votos de Rosimeri e familía. Obeserv: Amu todos vcs!!!!!”. Além disso, a amiga já havia se afastado quando Xana se converteu e passou a explicar todos os crimes através da Bíblia: “Ah, atropelamento seguido de fuga! Vamos ver o que os Salmos podem nos dizer a respeito!”
“Aqui do meu lado está o Peter Folk”, prosseguiu o tenente, dando tapinhas nas costas do subordinado. “Apesar de jovem, é cheio de saúde e determinação. Nesses últimos anos, acumulou funções e me ajudou a resolver inúmeros pepinos”.
Folk estava rubro como um pimentão ligeiramente passado.
“Ele investigou casos sozinhos e criou projetos para ocupar o tempo dos presos – como fabricação de estiletes e conserto de armas e celulares”.
Claps, claps, claps vinham da carceragem.
“Além de tudo mostrou ser mais competente que seus lentos e preguiçosos colegas! Vejam isso que estou falando como motivação: em nome das elaboradas técnicas de administração que venho aprendendo no UniCórnio...”
Xana, tomada de inveja, percebeu que perdia o controle. Estraçalhou o folheto da igreja Síndicos de Cristo, onde ocupa a função de missionária-lobinho da Equipe Cesto de Moisés. Por isso lentamente foi se escondendo nas sombras perto da porta da cozinha. “Estou cansada do leite da bondade humana”, sussurrou como se entoasse uma bruxaria. Nisso, esbarrou num armário empoeirado. Uma zarabatana, esquecida ali pela perícia, caiu na sua cabeça e ficou pendurada no brinco.
Lopez concluiu, arrebatando a platéia:
“É por isso que vou demitir Peter Folk!”
Fora um tímido aplauso vindo da porta da cozinha, a reação do departamento foi de espanto. Como assim?
“Eu aprendi que um grande empreendimento precisa de uma coisa chamada equipe. E uma equipe só funciona quando ninguém aparece mais que os outros”.
De braços cruzados, o novato Colimério balançava a cabeça com seriedade, aprovando a decisão do tenente.
“Mas, o que eu fiz de errado?”, perguntou o surpreso ex-detetive.
“Você tentou puxar o nosso tapete, como fizeram com Anakin no Ataque dos Clones”, interviu Colimério.
“Cale a boca, sarnento”, gritou Lopez, “Não mandei você latir! Tenha respeito pelo colega que está saindo! Então, como eu estava dizendo, a mediocridade é um caminho seguro para o desenvolvimento. É nesse espírito corporativo que escolho a detetive Xana para substituir Folk na chefia de investigações”.
O pessoal das celas aplaudiu. Apesar da simpatia pelo demitido, os presos sempre se entusiasmam com Xana.
Xana, por sua vez, torcia as pernas por causa de um inédito orgasmo vindo “não sei de onde” nos últimos segundos. Recuperou o fôlego e agradeceu com a voz meio sumida:
“Eu jamais tomaria o lugar de um colega. Isso não combina comigo. Mas o Senhor escreve certo por linhas tortas. Então eu só posso aceitar”.
“Não abuse, crente maldita! Eu me recuso a escrever em linhas tortas”, arrematou Lopez antes de colocar um charuto na boca. “Agora vamos parar com essa palhaçada e trabalhar. Colimério, venha coçar minhas costas.”
“Espere um pouco, tenente”, gritou Peter Folk, visivelmente transtornado. “Eu sei o motivo real dessa demissão. Você está se livrando de mim porque descobri que sua mulher...”
Fuuuuuuup!
Um dardo envenenado cruzou a sala e se alojou na jugular de Folk. Ele só teve tempo de grasnar a palavra “banco” antes de tombar inerte na fórmica. Rapidamente, aproveitando seu intenso treinamento caseiro, Xana escondeu a zarabatana em algum lugar sob a saia.
A delegacia entrou em pânico. No meio da papelada voando, os policiais corriam de um lado para outro com os braços para cima e os presos tentavam enlaçar as mãos entre as grades para orar e exigir a presença de algum líder do narcotráfico. Experiente e bem-preparado para essas situações, pois participou de várias desocupações de terra no Paraná, o tenente Lopez deu um tiro de fuzil para cima:
“Calem a boca. Ninguém sai dessa sala. O assassino está entre nós!”
Xana aprendeu muito com os pastores da igreja Síndicos de Cristo. Uma das lições mais valiosas é aquilo que o deputado Miltinho Lambança, líder da bancada evangélica na Assembléia Legislativa do Estado do Iguaçu, chama de “cinismo do bem”. Então, na recém-empossada função de chefe das investigações, ela levantou a voz:
“Só um Homem pode nos ajudar a resolver esse mistério”.
“Eu estou aqui, detetive Xana”.
Era Rocky Ombro, coçando o cabelo despenteado na altura da nuca e olhando tranqüilamente para cada pessoa da sala.
Xana pensava em Jesus quando disse aquilo, mas, enfim...

(continua)

No próximo episódio: Rocky Ombro precisa "ouvir" o que o finado Peter Folk tem para dizer. Xana luta para esconder a verdadeira identidade. Um antigo problema com engolir substâncias pegajosas pode denunciá-la. Não perca: "Em que parte do esquema entra... o crime?" - parte 2.

domingo, julho 30, 2006

O AVATAR # 4! Jesus vai carregar Ombro nas costas nesse episódio

Episódio de hoje: “Um carro de bombeiros chamado Desejo”.


A vida começa a voltar ao normal no número 1717 da Rua do Tatu Esperto. Rocky
Ombro ainda tenta encaixar as peças do quebra-cabeças que envolve uma
enfermeira, a suposta ex-mulher, Romeniatown e um suspeito com duas cicatrizes
em forma de redemoinho. “O que essas empresas de brinquedo não fazem para
vender!”, protesta, desistindo de encontrar o encaixe que talvez represente um
pedaço de tecido xadrez.

“O que quer para o jantar, filha?” A voz é macia, emitida por um biquinho amoroso pela fresta da porta colorida do quarto de Elizabete.
OVO,
ela escreve no bafo da bolha, imprimindo um enorme sorriso de felicidade no rosto cansado do detetive. “Obrigado, meu Deus, ela já começa a dizer coisa com coisa!”
Enquanto comem a omelete – uma receita especial com pasta de amendoim, criada especialmente por uma cartomante -, O AVATAR reflete sobre a importância da manhã seguinte: é o dia do teste para o papel de Blanche Dubois na peça da escola.
Elizabete estaria no espetáculo de qualquer modo, por causa da cota de dez por cento exigida pelo governo, mas o orgulhoso pai se sentiu ofendido ao descobrir que haviam criado o papel de irmã muda de Mitch para oferecer a sua filhinha. Depois de mencionar um nome do passado para a professora Ludmila, as portas foram abertas, pelo menos para um teste.
“Como sabe sobre o barão?”, Ludmila sussurrou em tom grave.
Alguém me disse”.
De toda maneira, a preciosa cria do papai teria sua chance, à qual se agarraria com todos os tubos.
“E para a sobremesa? Alguma fruta, meu amor?” Ela faz que “sim” com a cabeça, mas escreve algo tão lindo que Rocky Ombro jamais esquecerá – apesar do acento errado.
ÃMOR
O AVATAR abraça a bolha, com lágrimas indisfarçadas, e promete pela oitava vez naquela noite:
“Eu juro que nada de ruim acontecerá contigo, minha filha”.
**
Na manhã seguinte, durante o intervalo dos testes, Ombro aproveitou para conversar com o doutor Lagomar, padrasto de Jefferson Júnior, favorito para o papel de Stella.
“Por que desconfia de dislexia, Rocky?”
“Ela está melhorando, doutor, mas escreve algumas letras ao contrário. Acerta T, A, O, V, X, M... O problema é a enorme dificuldade com B, R, C, P...”
O AVATAR parou a frase no meio. Lagomar entendeu que era emoção e tentou animá-lo a continuar, mas foi interrompido. “Shhhh. Cheire!”, disse Rocky com o dedo indicador em frente aos lábios. “É fumaça!”
Uma voz fina e infantil ecoou das coxias. “Fogo! Salvem as crianças!” Tratava-se do diretor Claiton Bentevi, famoso pelo temperamento explosivo. Com as gêmeas Botelhinho nos braços, Bentevi pulou por sobre as cadeiras até chegar à saída de emergência. Atrás dele, as labaredas consumiam o velho madeirame do colégio.
Os bombeiros conseguiram controlar o incêndio duas horas depois. Como estava no depósito de fantasias, por causa da bolha, Elizabete acabou esquecida. Por sorte, o campeão mundial de rugby, Aparecido Roger dos Santos, passava pelo local, percebeu o desastre eminente e, num ato de bravura, agarrou o aparelho de sobrevivência e correu por dez jardas até a linha fora da escola.
O fato é que Elizabete sempre dependeu da bondade de estranhos.
“Não é a primeira vez que esse colégio pega fogo”, explica o agente Cassius Fox Smitherson, de cócoras enquanto analisa um tição grudado a uma carcaça de cachorro. “Em 1962, oito pessoas perderam suas vidas naquilo que ficou conhecido como O Churrasco da Escola Sinistra”.
O AVATAR sentiu que poderia haver uma conexão. “Hmmm, exatos 47 anos depois. Isso parece um padrão”. Fixou os olhos por sobre o ombro direito do agente, perto do último foco de incêndio, onde as gêmeas Botelhinho – Jeniffer, Jacqueline, Tábata e Cleonice – eram atendidas. Havia um rosto formado pelas chamas, um rosto que só o terceiro olho de Rocky Ombro poderia enxergar.
“Cassius, o que descobriram naquela parte da escola onde milhares de pombas foram torradas?”
“Ah, nada de importante, apenas mais um smash-coin”.
Smash-coin é o apelido que o pessoal da perícia científica dá para descobertas interessantes, mas que não contribuem para resolver o caso.
“Descobrimos uma reação química que transforma canetas de quatro cores em alpiste orgânico de alta qualidade”.
Bastaram dez segundos para a mente astuta d’O AVATAR cantarolar o significado daquele sinal: “passarinho na gaiola, feito...”
“Ei, Linus, aqui”, gritou, “me leve à Ma Ju Se Maro.”
“Ao Museu da Imigração Japonesa?”
“Não! Ao Manicômio Judiciário de Segurança Máxima de Romeniatown”.
Pela segunda vez na semana, Rocky voltaria àquele ninho de abutres peçonhentos. Dessa vez, direto no coração das trevas.
**
O acesso ao setor cinco só é permitido a três tipos de pessoas:
1) aos que trabalham no local;
2) aos que apodrecem para sempre nas celas escuras;
3) aos visitantes e curiosos.
Nas catacumbas do setor cinco, Ombro se encontraria com Donald Storm, conhecido nos anos 70 como “O Incendiário de Patópolis”.
“Isso é realmente necessário, detetive? Esse lugar me dá calafrios!”.
“Para chegar a um criminoso”, explicou com paciência, “é preciso entender a sua mente”.
Linus deu-se por satisfeito, embora não entendesse qual era a relação de sua mente com o manicômio e com o incêndio.
O perigoso setor cinco está lotado de criminosos que se converteram a Cristo. Donald Storm já foi o número 2 na máfia interna do presídio, apenas atrás do ex-skin-head, ex-homossexual e ex-negro Matias Salame, famoso no circuito off-jail pelo compacto “Jesus me esqueceu na cadeia”. “Esse cara é foda”, diz ao pé do ouvido o carcereiro Ananias, temeroso pois “as grades têm ouvidos e Deus tá vendo”.
Donald está sempre em pé sobre uma pilha de pneus, olhando sem piscar para a luz. De cinco em cinco minutos, pula no mesmo lugar e grita: “Viva São Bisonho, santo padroeiro dos corcundas”. Aí responde a si mesmo: “Viva!”
Rocky e Linus entram na cela: “Estamos diante do homem cuja inteligência vai nos ajudar a pegar o incendiário”, introduz o detetive.
Para ganhar a confiança do célebre criminoso, Ombro levou o único disco evangélico gravado por Storm, “O Fogo de Jesus me Curou”, e pediu um autógrafo.
Enquanto escrevia “Me Tira Daqui, Raul” na contracapa, o presidiário olhava para os lados e confessava seu plano aos visitantes. “Até o final de semana estarei fora daqui. As pessoas dizem que é impossível escapar de MaJuSeMaro, mas não sabem que fui eu que projetei esse lugar! Sei exatamente como escapar”.
“Por que ele nos contaria, detetive?”, sussurrou Linus.
“Todo psicopata é, no fundo, um exibicionista. Ele precisa mostrar sua insuperável inteligência para alimentar o ego faminto”.
“Teletransporte!”, concluiu Storm.
“Antes disso, caro amigo”, interrompeu Ombro, com as mãos juntas na frente do rosto, como se estivesse rezando, “Por que alguém incendiaria a mesma escola duas vezes num intervalo exato de 51 anos?”
“Viva São Bisonho, o santo padroeiro dos corcundas!”
“Então é isso”.
“Viva!”
Puxando Linus pelo braço, O AVATAR saiu a passos largos de Romeniatown. Sua parte da missão chegou ao fim. O trabalho agora caberia ao tenente Hernandez Lopez – organizar um grupo de busca para recolher todos os corcundas da cidade e fazê-los falar, mesmo com métodos pouco convencionais. “Dentro da delegacia, os direitos humanos não produzem respostas”, explicou para o assistente que, como naturalmente não podia ouvir o que o detetive pensava antes de chegar à justificativa, não entendeu a frase.

No próximo episódio: Ao investigar o assassinato de um monge numa convenção de auto-ajuda administrativa, Rocky Ombro reencontra Dirce, agora operadora de telemarketing. Não deixe de estar lendo: “Pai Rico, Filho Assassino”.

MUTANT HOSPITAL! Proposta para série dramática.

Episódio piloto: “Jovem demais para mutar!”

Muitas “coincidências” marcam as vidas de Samuel, Samira, Sandoval e Silviano.
Nasceram no mesmo dia, estudaram nos mesmos colégios, apreciam os mesmos pratos
e seus pais têm os mesmos nomes. Para completar, os quatro decidiram se formar
em Medicina. Duas outras coisas ligam essas pessoas especiais: são irmãos gêmeos
e mutantes passando pelos desafios da pós-adolescência.

Mais uma coincidência: o Centro Hospitalar de Romeniatown é o endereço de suas residências. É ali que tentam usar seus poderes para salvar vidas.
“Mamãe vai ligar”, deixa escapar Samira enquanto retira um apêndice.
O sistema de som dos corredores confirma a previsão:
“Dra. Samira Elesbão, telefone”.
Silviano, ainda deslumbrado com os poderes da irmã, larga a assistência da cirurgia e corre para o aparelho instalado no corredor.
“Vou passar a ligação de Altair Elesbão, Dr. Silviano”.
Secretamente, o mais instável dos irmãos Elesbão sempre espera que a irmã se engane: ela é tão perfeitinha, tão exemplar... dá nos nervos! Havia uma chance de que não se tratasse de mamãe, já que o pai dos quadrigêmeos também se chama Altair.
“Oi, filhão”, disse a orgulhosa Dona Altair, “a Samira não pode atender?”
“A favoritinha tá trabalhando, mãe”.
Silviano ama a irmã, mas a competição, às vezes, abala o relacionamento entre os filhos de Altair e Altair. Quando isso acontece, o garotão se fecha no banheiro dos empregados e exercita seu poder mutante: criar pêlo em frutas. Como os quatro Elesbão fizeram um pacto incompreensível de jamais revelar seus poderes em público, o imaturo Silviano vive passando por saias justas. “O que faz com essa banana peluda?”, perguntou a enfermeira Dirce ao flagrar o revoltado médico saindo do toalete. “É minha fantasia de Halloween”, gaguejou, “Mas ficou pequena. Vou devolver”.
Samuel passou por duas crises graves de intestino preso: quase morreu por sufocação. A dura experiência o deixou mais maduro que os irmãos. Eles reconhecem essa liderança e sempre ouvem quando Samuel tem alguma coisa para dizer.
“Não precisa invejar nossa irmã, Silviano. O poder de prever quando nossos pais vão ligar é uma benção, mas não serve apenas a ela. É para todos nós e para toda a humanidade”.
“É, eu sei”, admitiu o jovem doutor, enquanto ajeitava o topete no reflexo do aparelho de eletrocardiograma. “Mas eu não sei se agüento tanta pressão. A verdade é que eu nunca quis ser médico”.
A revelação chocou Samuel. Mesmo assim ele disfarçou, olhou para o relógio e se despediu, fingindo que tinha um compromisso na pediatria. “Vou dar uma checada nos pirralhos”, disse com um sorriso amarelo. Foi até o telhado do Hospital. Precisava ficar sozinho e, embora jurasse jamais usar seu poder à toa, se transformou na bandeira da cruz vermelha e ficou tremulando ao vento o resto da tarde. O homem que mais tarde subiria lá para consertar a antena jurou que viu uma lágrima escorrer da flâmula.
“Você viu o Samuel por aí?”, perguntou Sandoval, contente por ter salvado o terceiro rim durante a semana.
“Ah, não vi que era você! Quantas vezes eu preciso repetir que não devemos usar nossos poderes em público?”, ralhou Samira, brandindo um bisturi. “Que droga, por que eu tenho que fazer o papel da irmã chata?! Vocês têm 24 anos e não crescem!”.
Bem-humorado, Sandoval mudou a cor dos olhos novamente para castanho. “Tudo bem, azul não combina com meu pulôver”.
“Não sei de Samuel, vá procurar na enfermaria. Eu sei que você adora passear entre as enfermeiras”.
Entre as enfermeiras! Precisamente! Falar nisso, olha quem chegou. Ei, Dirce, viu meu brother mais caxias por aí?”
“Já tentou o mastro?” E saiu, lacônica.
Samira e Sandoval se olharam atônitos. Ambos pensaram: “Meu Deus, ela sabe!”, mas antes que pudessem discutir o que fazer, o dom da garota se manifestou:
“Papai vai ligar”.
Dois minutos depois:
“Filha, pode trazer um abacaxi quando vir para casa? O teu irmão arrumou um muito peludo”.

No próximo episódio: A Cruz Vermelha leva Samuel por engano, enquanto ele dorme. Num programa de TV sobre conjuntivite, Sandoval muda a cor dos olhos para seduzir a apresentadora. Silviano leva um barbeiro com Mal de Parkinson para uma plantação de tomate. Samira prevê o telefonema de um homem chamado Juraci e Dona Altair é obrigada a confessar que traiu Seu Altair. Não perca: “Algumas doenças são para sempre”.

sábado, julho 29, 2006

O AVATAR # 3! Rocky Ombro enfrenta o passado no lado obscuro da cidade

Episódio de hoje: “Romeniatown”

Rocky Ombro já passou por muitas coisas, mas não ficou
imune ao trauma pós-acidente. Duas semanas depois de ter sido reintegrado ao
trabalho, se sente incomodado, vazio. Algo está errado.Para O AVATAR, não são
apenas as lembranças da queda do avião. Falta alguma coisa... Quando revira pela
quinta vez as gavetas de sua mesa, encontra um porta-retrato. É isso! “Srta.
Gavirova, ligue para o Correio!”

O depósito do Correio fica na região mais escura da cidade. Para Ombro, seu nome poderia ser “Ninho de Abutres Peçonhentos”, mas para a maioria das pessoas é simplesmente Romeniatown.
A solícita atendente parecia fora do lugar: não usava as medonhas capas negras com forro vermelho que os imigrantes ostentam com tanto orgulho naquele pedaço de inferno.
“No que posso ajudá-lo, senhor?”
Ah, tantas respostas espirituosas! Ombro poderia pedir um novo sentido para sua vida, implorar que ela lhe arrancasse o dom – ou seria “maldição”? – que o conectava ao mundo ignorado pelas pessoas comuns. E se ela devolvesse a saúde à Elizabete? E se a balconista explicasse o que aconteceu com Seigla, seja ela quem for? E o sargento Lucius, poderia ressuscitá-lo?... ao invés disso, o detetive foi direto ao ponto.
“Fique de quatro”.
Na verdade, ele apenas pensou nisso. O que disse foi:
“Eu vim pegar minha filha”.
Três semanas haviam se passado e o correio não entregara a bolha com Elizabete Ombro no endereço que Rocky chama de lar.
No caminho do grande depósito, revelado por apenas três lâmpadas de 60 watts, mal encaixadas em balouçantes luminárias encardidas, a funcionária do Correio tentava se justificar:
“Não conseguíamos achar o endereço que sua filha escreveu no bafo da bolha”.
7171, OTREPSE UTAT OD AUR
Ombro deu o braço a torcer: Elizabete se equivocara, pobrezinha. “Sua saúde mental começa a ser abalada pelos anos de confinamento”, pensou o amargurado pai.
“Preciso assinar alguma coisa?”, solicitou ao dar dois passos à frente da balconista para espalmar a mão na parede esférica, encaixando na palma de Elizabete.
“Talvez o seu testamento, Rocky Ombro”.
Pelo reflexo da bolha dava para perceber a pistola C32 de sete tiros. Na verdade, era de cinco tiros, mas a superfície curva do balão cria efeito de grande angular. De qualquer modo, o trabuco não combinava com aquelas mãos delicadas.
“Ou será que devo dizer papai?”
Ombro esmoreceu. Não conseguia mais esconder de si mesmo porque odiava tanto aquele ninho de abutres peçonhentos.
“O que foi?”, ela desafiou, mudando numa rapidez incrível o semblante inocente para um rosto diabólico e rancoroso. “Acha que consegue vir a Romeniatown e simplesmente desprezar o passado?”
“Vocês são todos loucos! Sanguessugas malditos, saem pela madrugada roubando a alma das pessoas de bem...”
“Cale-se, chega das suas metáforas baratas, papai. Agora é a hora da verdade”.
Naquele momento, Rocky Ombro sentiu uma presença no depósito. Não conseguia perceber de onde vinha, mas um vulto se mimetizava naqueles cantos centenários onde as teias de aranha cristalizaram intocadas. Bastou um sopro na nuca, vindo do invisível, e a subjugante foi tomada pelo pânico.
Disparou a arma, atabalhoada. A bala passou a cinco centímetros do pescoço de Rocky. Sem pensar duas vezes, o detetive se atirou ao corpo à sua frente e, duas roladas para lá, duas para cá, tomou o revólver.
Sim, era a hora da verdade, e os dois antagonistas se olhavam sem trocar uma palavra sequer.
Até que um estranho som de bexiga esvaziando tomou o ambiente. A bolha! Desesperado, Rocky Ombro olhou para todos os lados e percebeu uma caixa de grampos variados, endereçada a uma tal Baronesa Olga Albuquerque. Atirou no pacote e dele recolheu dois alfinetes que não haviam sido estraçalhados pelo projétil. Foi o que bastou para interromper a contaminação da bolha onde vivia sua querida Elizabete.
“Nunca vou deixar acontecer nada com você, minha filha”.
Elizabete escreveu no esquálido bafo que não vazou pelo buraco da bala:“?ARUJ”
“Saruj, meu amor, saruj!” E Rocky Ombro desconfiou pela segunda vez naquela noite que talvez Elizabete sofresse de dislexia.
O interlúdio proporcionara à agressora uma escapatória. Da distante porta nos fundos do depósito, ela gritou: “Não acabou aqui, papai”.
Mas a porta estava fechada. E Ombro deu voz de prisão.
**
No espelho do banheiro da delegacia, O AVATAR percebia mais um sulco de sofrimento se acrescentando ao relevo escarpado de sua testa. “O que você quer de mim?”, sussurrou sozinho, tendo em mente a imagem da mulher armada.
Ao passar pela cela, incógnito, ainda pode ouvir a detenta se desentendendo com o carcereiro: “Eu não vou ficar aqui por causa daquele maluco assombrado, papai.”
“Mais uma coisa antes de eu ir embora, srta. Gavirova”, recuou da porta da frente, “Como se chama essa garota de Romeniatown?”
“Só sabemos o primeiro nome, detetive. Tá aqui no boletim de ocorrências. É...”
Seigla.

No próximo episódio: Rocky Ombro convence a professora de que Elizabete deve ser Blanche Dubois na peça da escola. Mas um incêndio criminoso pode pôr tudo a perder. Não perca: “S de Piromaníaco”.

sexta-feira, julho 28, 2006

ROCKY OMBRO NA ZONGO # 2!


Choveu discretamente durante a madrugada. Rocky Ombro acordou assustado e percebeu uma mensagem formada na água que escorria pela vidraça: O AVATAR estará nas páginas da ZONGO 2, em breve nas livrarias, bancas e na mão do Benett Macedo. O detetive foi contratado para figurar na mais importante e influente publicação humorística do Ocidente! Guarde seus caraminguás e compre a fabulosa ZONGO 2, agora ainda mais cheia de letras, números, desenhos e outros tipos de imagens. A ilustração desse post é o primeiro esboço que o Benett fez para o policial que combina sofisticadas técnicas forenses com mediunidade.
Mais informações no www.benett-o-matic.blogger.com.br

quinta-feira, julho 27, 2006

O AVATAR # 2! Rock Ombro às voltas com um mistério no céu

Episódio especial com 125 linhas de duração: “Senhores passageiros, desliguem os celulares”

O detetive Rock Ombro e sua filha Elizabete estão no vôo 125 da Companhia Glair
para o outro lado do país. Pela janela sobre a asa esquerda do avião, O AVATAR
vê o rosto do sargento Strinksmeyerson nas nuvens. Foi o homem que o ajudou a
enfrentar os primeiros anos da academia, o sujeito que apresentou Seigla, sua
esposa e mãe de Elizabete. Ombro percebe que sua mão treme ao segurar o uísque.
Pudera, todas essas coisas são novidades para ele.

Na noite anterior, acordara com um uivo doentio, um gemido bestial, um balido satânico a perfurar seus ouvidos. Era seu próprio ronco. “Seigla! Saponópolis!”, foi o mais importante do que lembrou daquele sonho enigmático.
Imediatamente providenciou as duas passagens e agora cruza os céus em direção ao seu destino. “Quem é Seigla?”, perguntou o tenente Hernandez ao receber o inusitado pedido de folga. “Parece que é minha esposa”. Ombro não sabia que tinha sido casado e raras vezes pensava no motivo pelo qual aquela garota dentro da bolha morava em sua casa. Apenas lia “IAP”, escrito no bafo da respiração da pobre infeliz, e respondia: “Iap para você também, meu amor”.
Isso iria mudar. Alguém ou alguma coisa havia se manifestado durante o sono. O AVATAR, como era conhecido pelo vizinho turco que se mudou, tem um dom – ele conversa com o além. Às vezes esse talento é um fardo difícil de carregar.
“Posso me sentar aqui do seu lado?”, perguntou a debutante Kelly Spelks Wrorstinberg, erguendo as sobrancelhas e iluminando os acentos com seus grandes e curiosos olhos azuis, “Minha janela fica muito do lado direito e isso dá um azar danado”.
“Ah”, surpreendeu-se Ombro ao ser pego absorto em seus pensamentos, “infelizmente está ocupado, minha querida”.
“Puxa, é que estamos na metade da viagem e como não vi ninguém aqui... será que seu acompanhante não resolveu se sentar em outro lugar?”.
“Não”, disse calmamente o detetive, “ele está aqui”. Antes que Kelly pudesse expressar seu espanto, Ombro aproveitou a passagem da comissária de bordo e solicitou “mais um pouco daquele líquido parecido com guaraná”.
Um rápido tremeluzir e... as luzes se apagam! Ensaia-se o pânico. Sem demora, o experiente comandante Paquito Svenson tenta tranqüilizar os 67 (68, diria nosso herói) tripulantes. “Passamos por um túnel de nuvens, pessoal, logo tudo estará claro nov... argh”
As luzes se acendem. As pessoas estão estáticas, silenciadas na imensidão do céu. Ouve-se um grito. É do co-piloto, que irrompe pela porta da cabine, trêmulo, e vomita as palavras, num ato desesperado de quem espera ser vítima de um simples pesadelo: “O comandante foi assassinado!”
Acostumado com situações semelhantes por causa dos anos de patrulha pelas ruas da cidade, Rock Ombro mantém a calma. Enquanto os outros passageiros berram, desmaiam, praguejam contra Deus, rezam, abraçam uns aos outros ou a si mesmos e tentam irresponsavelmente ligar para algum parente, O AVATAR fecha os olhos por um segundo e procura uma conexão mais clara. Então ele ergue o corpanzil fortalecido pelas feridas de guerra, e passa a colocar ordem na situação. “Em primeiro lugar, me dê esse telefone”, disse para a sra. Olga, viúva inconsolável do Barão de Albuquerque, “não sabe que é altamente perigoso fazer ligações de celular durante o vôo?”.
Quando todos silenciam, ele prossegue: “Tem algum médico a bordo?” Bem na frente de Ombro, por coincidência, um homem baixo, gordo e careca, vestido de jaleco branco e com estetoscópio no pescoço, levantou a mão quase em câmera lenta. “Dr. Lagomar Pedhista se apresentando, senhor”. Quando apertaram as mãos, O AVATAR não deixou de notar, silenciosamente, uma lontra de capacete tatuada no pulso do médico. “Dr. Pedhista, pilote esse avião”.
O cirurgião, que nos minutos anteriores só conseguia pensar que talvez nunca mais sentisse o peito macio de Jefferson, olhou para todos a sua volta e exclamou: “Mas, como sabe...” Ombro dá as costas, acende um cigarro e conclui: “Alguém me disse. Mãos a obra, doutor. Não se preocupe, terá um co-piloto quando chegar à cabine”.
“Eu sabia! Eu sabia!”, gritava Kelly, “eu não deveria ter sentado do lado direito”. Compreensivo com a histeria da jovem, o detetive interpelou: “não adianta chorar, boneca. Devia ter pensado nisso antes de embarcar... agora, com licença, eu tenho um crime para desvendar”.
Mas qualquer movimento pelo corredor estava cada vez mais difícil. A aeronave ziguezagueava e parecia perder altura. Com enorme dificuldade, Rock Ombro alcançou a cabine e encontrou o doutor acomodado na poltrona do piloto, olhando para trás. “Por que não está com as mãos no manche?” Pedhista ergueu os ombros e abriu os braços: “Espero o co-piloto que você disse que vinha. Não tenho a menor idéia de como se dirige isso”.
Bingo! Era justamente o que Rock Ombro esperava ouvir.
Apesar do barulho quase ensurdecedor do avião em queda, O AVATAR conseguiu alcançar o microfone e falou com os passageiros. “Amigos, podem se acalmar. Eu desvendei o mistério. Sei quem matou o piloto!”
Mas antes que pudesse revelar o nome do assassino, um grande baque atirou a todos contra o teto do avião. Em seguida, o ruído infernal das turbinas se silenciou num escuro profundo e os poucos passageiros lúcidos começaram a sentir a água escorrer pelo chão. Kelly abriu o olho que não foi cortado pela fuselagem e percebeu que finalmente conseguira um lugar sobre a asa esquerda – pelo lado de fora!
Assentos, roupas, corpos e comida plastificada se misturaram rompendo as últimas referências de direção. O que era escuro virou breu, pois as luzes da consciência é que se apagavam, uma a uma, naquele entulho de carne e aço.
...
Dois dias depois, Rock Ombro abre os olhos. A primeira coisa que vê é o rosto da enfermeira Dirce, especialista em circuncisões e vasectomia, mas emergencialmente transferida para a tenda improvisada no balneário de Praia Beach. “Quantos se foram?”, pergunta o detetive. Dirce levanta o lençol sobre a cintura de Ombro: “Os dois ainda estão aqui”. O homem encontra forças para sorrir, ainda que apreensivo quanto ao destino daquelas 68 almas. “Não, quero saber de todos os meus amigos”. Ela ri, mostrando que entendeu, levanta novamente o pano e diz: “Pode ficar tranquilo, os TRÊS ainda estão aqui”.
O AVATAR estava muito fraco para insistir, mas uma voz vinda debaixo da cama fez com que lembrasse de algo muito importante, uma das razões para aquela viagem fatídica: “Enfermeira, sabe o que fizeram com os embrulhos que estavam no bagageiro do avião?” Ela misteriosamente sabia. “Recuperaram tudo, detetive, e já enviaram para as residências via sedex”. Na porta, Dirce ouviu um suspiro de alívio: “Ainda bem, pois minha filha estava guardada lá!”
Sozinho no quarto, Rock Ombro liga a tv e zapeia para encontrar notícias sobre o acidente. Passa de relance por uma imagem e, ao voltar para o canal, já não revê o sujeito negro, com duas cicatrizes em forma de redemoinho, vestido com um colete do Clube dos Hemofílicos. “Terrorist...”, murmura antes de sucumbir ao efeito do sedativo.

No próximo episódio: Interpretando o movimento de moluscos num aquário, Rock Ombro passa a desconfiar que o verdadeiro nome da enfermeira Dirce é... Seigla! Não perca: "S de Dirce".

quarta-feira, julho 26, 2006

SUFOCANDO A CENA DO CRIME! Proposta para série de TV

Episódio piloto: "Justiça em família".

Mike, Todd, Elmer, Michael, Ismael, Marcus, Tobias, Nathanael, Jeffrey e
Cleverson Elder não são detetives comuns. Eles são todos irmãos e investigam
juntos os violentos crimes do distrito de Guaragi, em Ponta Grossa. Os irmãos
Elder provam que uma família unida vence qualquer desafio.
O delegado Frank Gutiérrez, deslocado recentemente de Palmeira para o distrito de Guaragi, entrou em pânico quando encontrou os corpos do casal Motta nas cercanias da chácara Maravilha, na comunidade de Roxo Rois.
Ligou imediatamente para o mais velho dos Elder, Mike. Cinco minutos depois, a perua da família de detetives, conhecida pela imprensa de Ponta Grossa como a van Elder, cantou os pneus em frente à velha estação da companhia elétrica. A cem metros dali, os policiais tropeçaram num monte de terra que se revelou a cova rasa onde estavam escondidos os corpos de Berga e Omar Motta.
“Por Jeová!”, blasfemou Gutièrrez, “Passamos dois meses procurando o casal pela vizinhança. Nas horas vagas, os rapazes usavam o monte de terra para marcar a quadra de queimada... e nunca desconfiamos... Filho, estou nessa profissão há 43 anos e, faltando só a metade disso para a aposentadoria, ainda me surpreendo todos os dias”.
Os irmãos Elder sempre falam em jogral, uma coisa que aprenderam com seu velho pai.
“Essa...”
“Vida...”
“É...”
“Cheia...”
“De...”
“Surpresas...”
“Delegado...”
“Gutielez...”
“... camarada...”
“Isso aí”.
Cleverson era só um bebê quando seu pai, o sargento Helder Elder, não suportando o falecimento da esposa, levada por um ataque fulminante de seborréia, tirou a própria vida com oito facadas nas costas. O choque por causa da tragédia trouxe traumas a todos os filhos. Nathanael, por exemplo, passou a trocar o “r” pelo “l”. Mas Cleverson, o caçula, sempre tem flashbacks bons quando toma banho. Consegue ver a holografia de seu pai, vestido com um manto marrom e uma espada de luz, lhe dando conselhos embaixo do chuveiro.
Helder Elder pregava a unidade familiar acima de todas as coisas loucas desse mundo insano. Então o casal e seus dez filhos faziam tudo juntos, inclusive tomar banho. Quando os avós e os primos vinham de Imbituva, também entravam no sabão. Falar em jogral foi a última lição do sábio e ponderado pai: “Está no Livro Sagrado, filho. Zafeu, capítulo 8, versículo 8: a família que fala unida, ficará unida como os testículos de Noé, cuja fé livrou seu saco da fúria do Pai Celeste. Amém”. “Amém, papai”.
Mike começou a perguntar: “Quem”
“é”
“o”
“principal”
“suspeito”
“desse”
“crime”
“holendo”
“delegado?”
“É isso aí”
Segundo o aturdido policial, os vizinhos descreveram vagamente um sujeito negro, com duas cicatrizes em forma de redemoinho na região lombar, vestido com um colete do Clube dos Hemofílicos, saindo sujo de sangue da casa dos Motta; arrastava um saco pesado de cuja abertura saía uma mão.
“Pode ser qualquer coisa”, deduziu o delegado.
Segundo as testemunhas - pessoas que freqüentam o templo de Jeová na frente da propriedade -, um homem que se encaixa na descrição havia ocupado uma casinha sanitária no fundo da chácara Maravilha.
“Descobrimos que o casal Motta tentava tirar esse homem da casinha havia meses, mas ele alegou que era propriedade improdutiva desde que os donos construíram um banheiro nas dependências da residência”, explicou Gutièrrez. Na verdade, Omar Motta dizia a quem quisesse ouvir: “Produtiva ou não, a casinha é minha. Se eu construí ou herdei do meu pai, o problema é meu”.
Com seu sistema randômico de celulares, os irmãos Elder ligaram para o juiz Silvester – que lhes devia um favor – e solicitaram um mandado de busca. De posse do documento, arrombaram a porta da casinha e, ao dar voz de prisão... não havia ninguém. Apenas um bilhete onde se lia: “Reforma Imobiliária Já! Viva a revolução urbana”. E um desenho mal feito do Bob Cuspe sob a patente.
Mascando fumo (sua marca registrada), o delegado Frank Gutièrrez olhou para cada par de olhos dos Elder. Ele sabia o que fazer. Foi até o rádio da polícia e passou o procedimento: “Atenção todos os carros. Prendam todos os negros hemofílicos sem-teto que encontrarem. Isso é para ontem!”. A última frase, na verdade, deixou os policiais muito confusos.
Os irmãos Elder entraram na van e voltaram para o Núcleo Habitacional 31 de Março, sua base de operações. Pela primeira vez, Nathanael conseguiu ver o espectro do pai, cavalgando ao lado da perua. “Bola pla flente, papai”, pensou.

No próximo episódio: Desafetos da polícia, os irmãos Elder encontram enormes dificuldades para, juntos, investigar a cena de um latrocínio. Não perca: “Crime no Elevador”.

O AVATAR! Proposta para seriado de TV

Episódio piloto: "S de Assassino".

O investigador Rock Ombro não é um detetive comum: ele combina sofisticadas
técnicas forenses com mediunidade e porte físico avantajado. No trabalho, ele é
frio e profissional, mas em casa sofre com a doença da filha Elizabete,
confinada a uma bolha desde que nasceu. Rock Ombro é conhecido por um antigo
vizinho como “O AVATAR”.

Rock Ombro acorda no meio da madrugada com um grito, o seu próprio grito: “Algo ruim aconteceu na estação de Bishop Bispo Street!”.
Toca o telefone. É o tenente Hernandez Lopez, um sujeito durão: “Coisa feia na Bishop, Ombro”.
Antes de sair, o detetive passa pelo quarto de Elizabete e derruba uma lágrima. Ela finge que dorme, mas para ele tanto faz porque a respiração da srta. Ombro embaça a bolha. “Mpmanhm mbnms”, ela diz depois que o pai fecha a porta.
Na estação, Lopez começa a dar o relatório.
“Não precisa, alguém já me disse, tenente”.
O chefe é cético, mas não discute, pois Ombro resolveu muitos casos com a ajuda de seu “amigo”. Alguém, descrito pelas testemunhas vagamente como um homem negro com duas cicatrizes em forma de redemoinho na altura das costelas e vestindo um colete xadrez do Clube de Hemofílicos, veio dos trens e atirou em vários usuários do transporte coletivo, matando um campeão olímpico, arrancando os olhos de várias crianças, aleijando uma escritora de best sellers e, pior...
“Talvez seu amigo não tenha dito o pior, Ombro”.
O assassino também havia dado cabo do sargento aposentado Lucius Strinksmeyerson, o homem que introduziu Ombro na polícia. Arrasado, o detetive esconde sua emoção, vai até o banheiro e liga para sua garotinha. “Filha, papai te ama”. Infelizmente, Elizabete não pode sair da bolha para atender. Mas a linha está cruzada com o além.
Ombro volta correndo: “Ele me diz que devemos ver os vídeos da estação, tenente”. A pedido do detetive, dois recrutas do FBI passam dois dias inteiros olhando em câmera lenta todas as imagens gravadas no desembarque. Linus Spotswarden-Richmergen sai para um café no copo de isopor e um pretzel, quando encontra O AVATAR na porta.
“Descobriram alguma coisa, Linus?”
“Nada ainda, tenente, há centenas de suspeitos naquelas imagens. A única coisa que descobrimos foi smash-coins...”
Smash-coin é a gíria do pessoal da perícia científica para descobertas interessantes, mas sem nenhum valor para o caso. “Sabia que os trens produzem uma fumaça em forma da primeira letra do bairro que atendem?”
“A que horas aconteceram os crimes?”
“Segundo a florista cega que testemunhou a tragédia, exatamente às 23h47”.
Acompanhado de Linus e mais alguém que só ele vê, Ombro entrou na saleta e pediu que o outro recruta, Cassius Fox Smitherson, retomasse as imagens entre as 23h40 e 23h50.
“Quantos bairros começam com S, filho?”
“Há vários: São Francisco, Santo Antônio, São Carlos, Sabará, São Sebastião...”
“Ligue para a Central, peça para enviarem todo o efetivo, incluindo os agentes administrativos e o pessoal temporário, para o bairro São Sebastião. Solicite que prendam todos os negros hemofílicos. Entre eles encontraremos o assassino”.
“Como sabe, detetive?”
“Olhe essa fumaça”, apontando para o vídeo. “Lembra que letra?”
“W... não, V... M?”
“S, recruta, S”.
O trabalho d’ O AVATAR chegara ao fim. “Ele disse que posso ir, agora”. Mas antes de sair do Instituto Forense Criminal FBI/NYPD/TIGRE, nosso herói é interpelado pela secretária Galinka Gavirova, filha de imigrantes russos encontrados na praia, dentro de uma garrafa. “Detetive, telefone! Alguém aqui alegando se chamar Elizabete Ombro”.

No próximo episódio: Rock Ombro descobre que já foi casado, de onde provavelmente saiu sua filha. Não perca: “S de Casamento”.

terça-feira, julho 25, 2006

BANG! Pimenta Magnética, capítulo 10


Abram!
Desatenção deve ser um treinamento.

Houve um momento exato na história da minha vida, no frescor da maturidade, que certa situação dramática exigiu extraordinária concentração... Não lembro o evento, apenas pipocam flashes do meu rosto hirto, mãos trêmulas, gole seco, pernas bambas. Mesmo assim, tinha foco claro e auto-confiança que beirava a estupidez. Exauri todas as minhas forças físicas e mentais naquele desafio.
A sensação foi de espantosa felicidade. Convivia com o temor de que tal comprometimento já houvesse morrido na infância ou na adolescência, quando qualquer conflito é mortal, qualquer drama inunda nosso consciente.
Ali eu desfrutava do alimento próprio para me livrar do desânimo. Mesmo afastado da mitologia cristã que atormentou minha infância, havia algo perfeitamente metafísico: eu acreditava, como uma verdadeira profissão de fé, na minha predestinação. Poderia qualquer coisa, pois sabia empenhar toda a minha alma no que fosse preciso.
Infelizmente, fé é privilégio de poucos e não costuma durar.
Primeiro nós perdemos a paixão resoluta pelos grandes projetos: esse é um mundo cheio de links, por toda parte, que ilustram os fracassos de odisséias semelhantes às nossas. Depois, porque a maturidade tende a limpar o ego – e o resultado pode ser uma terrível frustração. Então sou tão predestinado quanto o cara crente que é o novo Orson Welles. Ora...
Aqui.
Alguém bate e grita. A voz rouca some no meio das palavras, confundindo-se com soluços. Um tom agressivo, mas ao mesmo tempo suplicante, como se pertencesse a um estereótipo sulista, um cantor envelhecido, viril, misturando sua milonga com a indignação pelo tempo perdido.
Abram!
Na mudez do sexo interrompido, coração a saltos doloridos, você emite um “ah” sussurrado, de desespero, quando ouve e, pior, percebe que eu também ouço, um som metálico tinindo através da porta.
Eu preciso fazer alguma coisa – aí sinto o completo inverso daquele brilho esperançoso de dez anos atrás. Só consigo pensar que as súplicas do homem ensandecido à porta diminuem em intervalos regulares. “Ei, eu sei que tem gente aí, abram”. “Sei que tem gente aí”. “Abram!”. “!”.
Afasto meu corpo bem devagar para não criar alarde. Percebo seus olhos marejados. A mistura de suor e sêmen retém a pele enquanto nos separamos, como folhas auto-colantes. Quando estou ligado a ti apenas através da ponte formada pelo meu pênis, com um braço apoiado na janela e outro angulado sobre meu próprio quadril, antes do bálano ganhar a luz da lavanderia, a pimenta magnética que havia saltado de suas costas e estava alojada caprichosamente entre as nádegas, invisível para nossa sensibilidade, escorrega pelo líquido luminescente de sua pele, diminui a velocidade por causa do grosso esperma que passa a envolvê-la e finalmente cai nas lajotas frias entre nossos pés.
Bang!
O som não foi grave assim nem tão estridente. Mas não ouvíamos nem nossa respiração, nem a suave estalo de ar no momento em que saí de sua vagina. Não ouvíamos nada além da madeira espancada, do eco súbito do aço contra a porta e dos gemidos daquele homem lá fora.
O ricochete da pimenta no piso funcionou como um despertar.
Você se assustou, fez um movimento brusco como se pudesse impedir no espaço e no tempo morto que o objeto chegasse ao chão.
Por causa dessa aflição, tocou o painel da máquina de lavar roupas. Curiosamente havíamos surrado aquela lavadora durante uns vinte minutos. E ela agüentou quietinha. Agora, no momento fatal, você consegue ligar o aparelho! A água lá dentro rapidamente vira um redemoinho e as pesadas calças jeans voltam a açoitar o cesto. O rangido se torna um mantra nervoso, toma a cozinha e avança por baixo da porta de entrada, envolvendo as duas sombras que representavam o convidado de pedra disposto a levar D. Juan para o inferno.
Lembro de todas as vezes que me alvorocei para explicar mal-entendidos: acertei o copo com canetas, derrubei a xícara de café, tropecei nos cadarços, desci no ponto de ônibus errado... Nunca conseguia resolver nada.
Certas coisas não mudam.
Tentei desligar a máquina e acabei acionando o modo “SUPER” alguma coisa, o que multiplicou os ruídos.
Você olhou para mim com uma cara de louca. Juro que, se fosse uma atriz numa novela, eu lhe acusaria de canastrice. Para meu desespero, era autêntica. Desistimos de desligar a máquina. Virou para o armário que sustenta a pedra da pia, abriu uma gaveta, a segunda, a terceira de baixo para cima, e de lá tirou uma faca.
“Pegue”.
Você enlouqueceu de vez. Pare com isso, não é brincadeira.
“Eu sei o que vai acontecer. Juro que sei. Por favor, pegue”.
Aceitei a lâmina, não por causa da intenção de usá-la, mas para tirar a arma de suas mãos. Empurrei-lhe pela cintura. “Com licença”. E fechei a gaveta. Com licença? Meu Deus, como sou imbecil. Que hora para dizer uma tolice dessa.
“Pelo amor de Deus, abram essa porra dessa porta!”.
Virei naquela direção e sequer senti que estava segurando uma faca, exatamente a única grande e afiada o suficiente para provocar pânico.
Fiquei parado uns cinco minutos. E tudo virou murmúrio se distanciando. O vulto sob a porta ia e vinha. Seu rosto, muito mais pálido que o a textura do meu balcão. O ruído da máquina se tornou tão regular e sem importância que se incorporou à acústica ambiente. Quando libertei um suspiro contido...
BANG!
Meus sentidos praticamente apagaram; minha visão parecia ter sofrido uma mudança dramática de lentes: o caminho até a porta se esticou até quase o infinito. Percebi as juntas dos dedos martirizadas pela força com que eu apertava o cabo da faca.
Ouvi o som pesado e inerte despencando no piso do outro lado da entrada. Simultaneamente, o ruído metálico quicando uma vez e deslizando até ser interrompido pela porta do elevador.

(continua)

segunda-feira, julho 24, 2006

UMA CONTRIBUIÇÃO DE BENETT!


My name is Matt Foley. And i'am a motivational speaker.

O ROMANTISMO É VULGAR!

Um dos meus bisavôs entrava a cavalo na igreja.
O eqüino empinava, o alemão dava uma gargalhada e os atônitos fiéis se empurravam para os cantos do deambulatório. Por quê? Sabe Deus.
Meu outro bisavô ficou cego e morreu de tristeza num lugar chamado Faxinal dos Papudos, perto de Tibagi. Não tenho tanta certeza da localização, pois sou do tipo ordinário e por isso nunca tive interesse especial pelos galhos genealógicos.
De qualquer forma, esses camaradas parecem ter produzido o sangue que eu “puxei”. Por infelicidade, sou civilizado demais para entrar nos lugares montado em algum lombo e, por sorte, não giro lascas de madeira para furar os olhos, como aconteceu com o segundo.
Mas tem algo nessas entidades familiares que me fascina e orgulha.
Sei bem de onde tiro perigosa admiração.
Um deles, Luís Volknig, era viril o suficiente para desafiar o mundo, tinha a fama de se apaixonar por todas as mulheres, mas o germânico padecia de gênio péssimo e violento.
Já Domingos Cavallari era amoroso e dedicado à família, porém foi capaz de tirar a própria visão enquanto entretinha o neto com um brinquedo que consistia num barbante amarrado a pedaço de pau. Rodando no ar, o artefato produzia um zumbido mágico. Um acidente fez os olhos desaparecerem.
Vovô era um colono italiano que foi expulso várias vezes de suas terras pelos assassinos grileiros que fizeram fortuna no Paraná. Sustentou a família com enorme dificuldade e sabia ler e escrever, ao contrário da grande maioria dos trabalhadores rurais que se martirizaram na história do país. Amava a literatura para além de quase tudo – digo “quase” porque romantizo uma semelhança com minha própria natureza, empenhada em atividades mais, digamos, rústicas do que as palavras impressas.
A imagem, no meu imaginário, deve se confundir com algum personagem de Hemingway. Grande sensibilidade, nenhuma afetação intelectual e o charme de ser despudoradamente humano.
Com a foto em mãos, eu percebo ter herdado de Luís alguns traços físicos, como o queixo redondo e a testa alta. Era um conquistador, apesar disso. Mulherengo, diriam os intolerantes. Sua intensa atividade amorosa provocou uma diáspora dos Volknig, de um jeito que não sei exatamente que parentes tenho espalhados pelo mundo – e o que justifica tantas variações de sobrenome: Folkenig, Folquening, Folquenig até mesmo entre membros da mesma geração. O fato é que o sujeito galopava na igreja e nas camas com o mesmo entusiasmo.
Na primeira Zongo, eu escrevi sobre minha inveja de Gene Kelly e sua posição privilegiada no mundo dos machos heterossexuais – apostando na premissa de que os hormônios femininos entram em ebulição quando o homem dança. Eu penso: será que Domingos ou Luís saíam por aí dançando para conquistar as mulheres?
Imagine um personagem justaposto. Ele chega à igreja. Amarra o cavalo, tira o chapéu, caminha lento até a metade do pavilhão, ressaltando o som do salto da bota no piso encerado. Repentinamente, interessado em uma mulher de profundos olhos misteriosos à sua esquerda, ele salta sobre um banco e, como quem não quer nada, TAC-TATAC-TAC TACTAC-OLÉ!
Uma tia-avó, hoje falecida, contou que Domingos falava sobre milhares de assuntos, envolvia os ouvintes em histórias escabrosas de mistério, mentia sem pudor a respeito de suas aventuras como se fosse o Barão de Münchausen. Mas na hora de dizer o que era importante, preferia o jogo de abstrações; entregava-se a um labirinto poético. Enquanto outros se aproximariam da mulher e diriam “tenho uma coisa para te falar...” ou “do jeito que você me olha...” ou “demorei muito para te encontrar...”, o italiano lançava seus dedos à cintura da prenda, olhava para cada centímetro do corpo a sua frente e lançava um longo e doloroso suspiro.
Esse híbrido simbolista dos meus dois antepassados era um homem terreno. Sofria os golpes da arte com sensibilidade invulgar, mas vivia para o mundo. Deliciava-se com o desafio de enfrentar os inimigos, os companheiros do trabalho, a família, os animais da fazenda, as árvores e os prédios. Para ele, amar não era uma união harmoniosa. Era um enfrentamento.
***
Escrevi a primeira versão desse texto para minha extinta coluna no Pop. Depois descobri que havia confundido a história dos dois bisavôs. Hoje minha mãe apareceu aqui com uma foto que recuperou em Londrina, quando visitou a tia Ana. Segundo a D. Neli, essa foto do bisavô Luís tem mais de 100 anos - fiquei emocionado, pois nunca tinha visto qualquer retrato do homem (e é curioso como muitos dos meus alunos usam um topete semelhante hoje em dia!).

Lembrei que já havia recuperado um retrato do Domingos, o bonachão à frente da cerca, e daí me pareceu justo reescrever aquela coluna (ainda mais que estava muito mal redigida, como de costume; com certeza vou pensar a mesma coisa sobre essa daqui a cinco minutos - é por isso que tento não ler de novo o que já escrevi: o arrependimento encurta muitas carreiras nesse ramo. Sigo o conselho do Woody Allen, que diz jamais ver seus próprios filmes).

As últimas fotos, com a fotometria tão ruim, mostram eu, o Rodolfo Bührer e o Luís Carlos, nosso motorista na época da Gazeta. O homem que está comigo na penúltima é Gervásio, se não me falha a memória (já se foram 8 anos e me pergunto porque essas calças estão levantadas desse jeito...). Fomos a Sutil, colônia em Palmeira. Trata-se do último quilombo paranaense plenamente habitado por negros. Depois da reportagem, resolvemos ir até as Capelas de Vieiras, lugar lotado de ex-votos e fragmentos de "graças recebidas" e promessas árduas.

A maior das construções, bem no meio do terreno, estava com a porta de metal bamba, de modo que a malandragem do Luís abriu o fêcho e pudemos ver o que tinha lá dentro. Havia sido erigida por último e em homenagem ao homem que ajudou a construir as outras. Na parede, escreveram a história de um cara muito muquirana que estava morrendo de apendicite (imagine!). Tinha até diálogos. O médico teria dado o diagnóstico e recomendado a operação. O enfermo perguntou quanto custaria. "Dois contos de réis", respondeu o médico. "Então eu morro". Mas na madrugada, banhado em suor febril, o velho recebeu a visita de uma freira, que mandou-o rezar algo que não lembro mais. Acordou curado.
Sabe o nome dele? Domingos Cavallari.

Eu não tinha a menor idéia e até hoje me arrepio quando penso na história.

THE LADY IS ABSTRACTED! Completo

Parte 1
A atriz da minha peça precisa grudar na parede.
Depois de discutir bastante sobre os caminhos da preparação, elaborar em detalhes apoios que poderão ou não ser anexados ao cenário e ouvir especialistas de várias áreas, como a Suely Machado,professora de expressão corporal do ACT, fiquei convicto de que o primeiro passo é Tai Chi Chuan.
Na verdade, eu tinha decidido a respeito antes de ouvir qualquer um, inclusive a atriz. Acho que fiquei seduzido por outra oportunidade de misturar linguagens no processo para a encenação.
Bem-vinda receptividade confirmou a intuição. Todos se reuniram, se enlaçaram ombro a ombro, e disseram em coro:
“Boa idéia, Tai Chi Chuan é uma ótima maneira de desenvolver o equilíbrio físico e mental necessários para o difícil desafio”.
Depois aplaudiram e se abraçaram com fortes tapas nas costas.
A Priscilla passou, então, a ter aulas diárias de Tai Chi Chuan com um japonês chamado Frank.
Confesso que adoraria praticar a arte marcial – talvez seja idéia romântica: não me livro do modelo Daniel Sam & Mestre Miaggi sob os troncos do trapiche, no final da tarde, erguendo lentamente as pernas e abrindo os braços como um albatroz... Também devo admitir que adoro o seriado Kung Fu, com o David Carradine, e sempre que preciso tomar uma decisão importante como em quem votar, se apóio ou não determinado aborto ou se acredito em cremes dentais com sabores divertidos, eu penso:
“O que o Pequeno Gafanhoto faria?”
Mas, como eu imaginava, é um treco difícil, dolorido e que exige obstinada disciplina. Frank, por exemplo, esteve prestes a fazer votos monásticos e, mesmo fora do templo, acorda todo dia às 5h30 para meditar e praticar Tai Chi Chuan. Portanto eu fico feliz em “treinar” ouvindo a Priscilla, toda dolorida e praticamente desmaiada, contar os exercícios ainda elementares.
O primeiro deles é o movimento chamado “Cavalo”, que consiste em abrir as pernas, flexionando-as em 90 graus, e sustentar o equilíbrio com a planta dos pés. Parece simples, mas tente fazer isso por cinco minutos. É impossível para alguém que, como eu, tem a elasticidade de uma barra de cereal.
A prova do funcionamento da coisa é que o próprio Frank, quando prestou o exame para se tornar professor da Federação Brasileira, precisou ficar uma hora nessa posição, observado de perto por outro japonês, bem mais velho, barbudo e intolerante.
“Imagine o que aconteceria comigo? Eu nunca mais sairia do lugar. Teria que trocar os bancos do carro por selas”, eu previ, enquanto dirigia para o curso, ontem à tarde.
Aí veio a conversa sobre começar aos poucos, respeitar os limites do corpo, blá, blá, blá, e eu caí, como sempre, naquele papo auto-depreciativo que parece implorar expressões de conforto, como se estivesse na fila para ser atendido por um médium. Do alto de sua invulgar flexibilidade e preparo corporal, ela saiu com essa:
“Veja, todo mundo tem seus pontos fracos. Você é desajeitado, eu sou distraída”.
Temos aí uma verdade indiscutível. Priscilla é o tipo da pessoa que você já espera que não preste atenção. Para provar, incluímos frases sem sentido no meio da conversa:
“Então o sargento Howie vê que Rowan realmente estava viva e que Cristo e os apóstolos estavam por trás do Homem de Palha”.
“Tá”.
Mas nada se compara com as histórias que ela me contou durante o caminho.

Parte 2

Poucas coisas são mais aflitivas do que perder a deixa para entrar no palco. Isso piora quando se trata de musical com dezenas de atores. E você precisa aparecer cantando!
Pois a Priscilla aguardava a deixa na coxia durante apresentação de Babes in Arms, num teatro de Greeley, cidade do Colorado, tagarelando com a amiga Brigette, que também deveria entrar em cena.
O coro já entoava a famosa letra de Lorenz Hart:

She gets too hungry, for dinner at eight
She loves the theater, but doesn't come late
She'd never bother, with people she'd hate…

“Perdemos a deixa!” Entraram em pânico. Brigette estava decidida a não entrar, mas nossa atriz deu um salto em direção ao palco, puxando a colega pela mão.
That's why the lady is a tramp...
Obstinada, foi abrindo caminho entre os outros atores até chegar à marcação, logo no proscênio! Não percebeu, entretanto, que a manga de Brigitte havia enroscado na maçaneta da porta que levava ao palco. Ao seu lado, toda desengonçada, a amiga dançava com um dos braços nu.
Won't dish the dirt, with the rest of those broads...
Priscilla passou a procurar a manga pelo palco, "disfarçadamente". Com o canto dos olhos, viu o pano pendurado na porta lateral. Aproveitando um movimento da coreografia, sumiu da vista da platéia. Segundos depois, apareceu com o trapo mal camuflado entre as mãos. "Pegue, Brigette!"
Não poderia ter esperado até que todos saíssem do palco? "Me distraí..."
“Isso não foi nada”, ela me disse, “o que eu devo mesmo evitar são competições em que preciso cumprir percursos”.
Estava cada vez mais intrigante!
“A situação mais constrangedora da minha vida aconteceu durante um campeonato estadual de natação entre escolas”.
Nervosa e consciente de sua implacável distração, temia perder o sinal. "Swimmers, take your marks". Como sempre, antes do "go", alguém queimou a largada na primeira raia e todas voltaram para a marca inicial. Mas a concentrada nadadora não ouviu e continuou nadando. O juiz gritava para que parasse, o treinador acenava e começaram a chamá-la pelo alto falante do ginásio. Ela foi até um lado, deu a volta, e manteve as braçadas. O público gargalhava e os outros competidores ficavam pulando no mesmo lugar, impacientes.
Quando a odisséia acabou, percebeu a gafe e, roxa de vergonha, tentou sair da piscina. Mas era muito funda e a distância entre a água e a borda, muito alta. Exausta por ter nadado com tanta determinação e tensa com o aplauso piedoso de 20 mil pessoas, não conseguia impulso para alcançar o piso superior.
Os outros tentavam ajudar e Priscilla escorregava pelos ladrilhos.
“Eu sempre me perco”, completou desacorçoada, “Quando vou correr de kart, continuo dando voltas depois que a corrida acaba”.
Tive uma idéia!
“Vou escrever um monólogo para você com essa história!”


Parte 3

“Não mesmo!”
“Como assim?”
“Já notou que sempre me descreve de um jeito que pareço burra, distraída ou ingênua?”
“Ei, ei...”
“No seu blog, sou a personagem que não entende o que você está falando e pergunta: como assim?”
Mas o monólogo vai me redimir dessa impressão, eu disse.
“Chega de ser escada para suas piadas”.
Eu já não estava ouvindo direito. Se ela dissesse que Jesus e os apóstolos queimaram o
Sargento Howie no Homem de Palha, aceitaria com um aceno de cabeça.
“Eu juro que nunca mais vou tratá-la como boba ou distraída numa história”.
Depois de alguns minutos mergulhada numa conversa que já me escapa, lembrou que eu exagerei na anedota do Babes in Arms. “Você disse que eu tentei colocar a manga de volta na camisa da menina! Só um idiota faria isso. E aquelas frases estúpidas? Pareço um desenho animado”. Argumentei que se a história acabasse com a Brigette atuando com o braço pelado, como realmente aconteceu, ficaria banal demais.
De qualquer modo, prometi que não mencionaria mais o episódio.
“Veja, você pode fazer o monólogo naquela linha de Canção do Suicídio”.
Quero investigar as possibilidades de interpretação em histórias “contadas” pelo ator, testar o aprimoramento de narrativas curtas durante o processo: substituir falas por gestos de intenção, estes por projeção da voz, trocada por marcação e assim até que corpo, som, espaço e texto se completem de forma mimética - busca óbvia do teatro, mas aplicada especificamente à tradição oral.
“Eu já disse que não sou engraçada”.
O climax será o momento em que Priscilla tenta sair da piscina. “Precisa assumir esse ar blasé e protestar como se estivesse com sono. Descreva o ambiente conturbado, as pessoas rindo de ti e aplaudindo, os professores de cócoras à beira da piscina. Nisso dê umas barrigadas no ar e diga: ‘Eu parecia uma foca amestrada, só faltava jogarem uma sardinha’. Em seguida imite uma foca batendo palmas em agradecimento”.
Ela ficou um silêncio alguns segundos, olhando para mim com a boca aberta.
“Você está louco! Eu não vou me submeter a isso”.
Ataquei até com o papo do ator santo do Grotowski, lembrei que o Roberto Innocente nos disse, durante oficina, que o grande ator usa o ridículo como trunfo e cheguei mesmo a fazer uma careta e imitar o Cosmo de Donald O’Connor:
Make 'em laugh
Make 'em laugh
Don't you know everyone wants to laugh?
My dad say: "be an actor, my son
But be a comical one
They'll be standing in lines
For those old honky tonk monkeyshines"

“Mas a piada não tem graça. Vai ser constrangedor”. Não, não, eu retrucava, será um grande desafio na arte de usar o corpo.
Nisso, chegamos em frente à escola ao mesmo tempo que Frank se aproximava da porta. Acenou e ficou esperando.
“Já sei”, eu disse, saindo do carro, “vou pedir para o professor de Tai Chi Chuan te ensinar a Posição da Foca”.
“O quê?!” E saiu apressada atrás de mim. “Isso é ridículo, não existe Posição da Foca”.
Eu estava decidido. “Deve ter alguma parecida. Tem Foca na China? Posição do Coala, quem sabe...”
“Victor, pare, não me faça passar vergonha. Você não vai pedir isso para ele!”
Mas já tínhamos chegado ao Frank, que nos cumprimentou com o punho direito acomodado na mão esquerda, na altura do peito. Priscilla sorriu para o professor e sussurrou brava no meu ouvido:
“Me empreste a chave do carro, vou dar uma volta na quadra enquanto isso”.
“Frank, parabéns pelo seu trabalho”.
Como bom japonês sábio de filme americano, ele franziu o cenho e respondeu com um aceno rápido de cabeça.
“Me diga, você pode treinar a Priscilla numa posição de foca?”
A testa ficou ainda mais enrugada.
“Você pretende vendê-la para o circo?”
O lento monólogo posterior de Frank me mostrou que talvez ele tenha ficado ofendido com a utilidade que eu dava para a arte marcial. Tinha me metido numa saia justa. O que o Pequeno Gafanhoto faria?
“Desculpe a minha afobação”, justifiquei, “Admiro muito a cultura oriental. Tenho grande respeito”. E contei até que minha mãe fora noiva apaixonada de um japonês, Massanori Inouê, poucos anos antes de eu nascer. O bocó resolveu fumar à porta numa noite tempestuosa e morreu partido por um raio.
“Mas ela deve ter passado vontade durante a gravidez, né? Percebeu como eu tenho os olhos meio puxados?”
Ele sequer moveu os lábios e levantou as sombrancelhas, escandalizado pela piada. Ainda bem que ninguém dá “golpe” de Tai Chi Chuan. E ainda bem que ele se distraiu com outra coisa.
“Foi a Priscilla que passou pela terceira vez de carro aqui na frente?”

Parte 4 e última - Not so abstract

Depois de confortar meu amor próprio com a solução da Priscilla, comecei a perceber que não acreditaria por muito tempo naquela idéia holista.
Então eu sou desastrado, MAS, em compensação, ela é distraída.
O que torna Deus um justo e equilibrado administrador funcionalista.
Eu sou desastrado, ela é distraída, Fulana é hermafrodita, Sicrano tem dois redemoinhos, Beltrano tem câncer nos testículos.
Cada um com seu problema, não dá para reclamar.
O fato é que não precisei pensar muito para lembrar que, além de descordenado, também vivo no mundo da lua.
Hoje menos, mas na infância isso era um fardo terrível.
Na época dos racionamentos, quando tínhamos que enfrentar filas enormes para comprar um pacote de leite, minha mãe me arrancava cedo da cama, ainda que chovesse, e me mandava para a missão no Supermercado Tuma.
Era o tempo do Sarney.
Em muitas ocasiões a gente ficava três horas, ao ar livre, esperando o mercado abrir e, na minha vez, já não tinha pacote sequer.
Mas o pior era quando eu acordava, como fazia todo dia, enfrentava a fila, como sempre, e, ao chegar ao balcão... não lembrava o que era para comprar.
Onde eu estava com a cabeça?
Gibis, talvez. Ou especulando sobre alguma aventura misteriosa no espaço, no centro da terra, em outra dimensão, ou imaginando como seria poder ficar invisível... eu tinha verdadeira adoração por Júlio Verne e H. G. Wells! Também me preocupava com outras banalidades do cotidiano: o fim do mundo, inferno, assombrações, morte, com as meninas... com as meninas!
"Não tem mais, piá".
"Ãh? Não tem mais o quê?"
Lembrei que deixei de fazer prova mais de uma vez porque não tinha caneta. E ela estava na minha orelha.
No final da adolescência, quando havia leite em toda a parte, passei por alguns constrangimentos por causa da distração.
Mas nada foi mais melancólico do que o episódio da camisa verde.
Eu adorava a camisa porque era muito parecida com aquela usada por Miles Davis na capa de Milestones, um dos meus primeiros discos de jazz e até hoje um dos favoritos.
Paguei caro por ela, moeda por moeda economizada.
Eu iria passar a noite na casa do Sílvio. No dia seguinte iríamos a algum evento.
Coloquei minha melhor camisa numa sacola e saí em direção à rua.
"Victor, pode deixar o lixo lá na frente?"
Peguei a sacola de lixo na outra mão e desci as escadas. Dia azulado, sol morno e delicioso. Arremessei uma sacola no latão e resolvi dar uma passada nas lojas da minha rua.
Mas comecei a me incomodar. Como as lojas de Ponta Grossa são mal cuidadas! "Que cheiro horrível nessa espelunca!"
Deveria ser algum problema no esgoto daquela quadra, pois a lanchonete ao lado, o correio logo acima e o sebo na esquina também cheiravam mal. Tomei o ônibus para o Jardim América e a curta viagem parecia não ter fim.
"Sílvio, o ônibus estava medonho!"
Com uma expressão meio estranha, ele pediu para me acomodar no quarto da Ana Paula, sua irmã, que estava fora. Fui até a porta, joguei minha sacola na cama e voltei para a sala, ver os novos vinis que ele tinha comprado.
Alguns segundos depois, a mãe do Sílvio:
"Ei, por que tem cascas de banana na cama da Ana Paula?"
***
Um problema na cabeça
Será que dá para compreender ou é uma expressão muito regional?
"O que você entenderia se eu lhe falasse que tenho dois redemoinhos?"
"Que você é louco".

domingo, julho 23, 2006

LAGOMAR MÃOS DE TESOURA!

No final do ano retrasado, aos 30, fiz circuncisão.
Não foi por motivos religiosos. Detestaria parar com a bisteca de porco.
Meu bebop usava capuz, como o mano que sai mocado de um show grátis do D2.
E passou a olhar as coisas de frente, sem subterfúgios, através de seu único olho.
Veja a comparação.

"Doeu?"
Cara, doeu depois, quando os pontos ainda tornavam o dumba-dumba instável, digamos assim. Dr. Lagomar disse: "45 dias sem sexo". Não parece muito quando, dormente, você olha para o pequeno scarface e pensa: "Meu, esse monstrinho não vai curtir trabalhar nas próximas semanas!"
"Por que fez, então?"
Ora, é mais higiênico, mais confortável e, para ser bem honesto, acho que sofria de um pequeno problema no embutimento. Muita morcela para embalagem apertada.
Tá vendo aqui? Essa cicatriz vem da navalha afiada do dr. Lagomar.
"Mas agora ele tá tranqüilo, né?"
Ora, depois de algum esforço num terreno estreito e escorregadio, jonathan merece dormir um pouco - mesmo sem fechar o olho.
"Ele não parece um Muppet?"
Com a cabeça na minha barriga, ela ergueu o gonzo e, apertando a glande, abria e fechava sua boquinha. Na outra mão, levava os dois joaquins para lá e para cá. "Manã manã", ela cantava dublando o marionete. "Tutu turutú", completava balançando a legítima bolsa de pele enrugada logo abaixo.
Ah, o dr. Lagomar. Lagomar! Não dava para conter meu velho problema.
Eu estava lá, pelado, com um avental que, além de não cobrir o corpo, forma uma espécie de moldura, como se brilhasse em volta do paciente e todos dissessem: oh, não gostaria de estar no lugar desse seu tímido e encolhido amigo na hora da faca - timidez que perigosamente iria embora logo que percebi duas enfermeiras preparando a mesa para a destreza do dr. Lagomar .
"Está se sentindo bem, Victor?", ele resmungou sob a máscara.
"Tá um pouco úmido por aqui, dr. Lagomar".
O som metálico dos instrumentos cirúrgicos ganha eco dramático numa fria sala de cirurgia. As duas enfermeiras parecem se comunicar com o olhar. Fitam contentes meu félix (que fingia estar dormindo para pegá-las de surpresa).
"Você não imagina como nos sentimos frágeis diante do milagre da existência quando alguém está prestes a descascar uma parte de sua berinjela", eu disse, olhando para as sombras fantasmagóricas do meu ventilador de teto.
"Go down Moses", ela fazia com o cantor principal. "Let my people go", completavam os gêmeos encasacados.
O médico explica que uma delas, Dirce, vai aplicar a injeção que fará eu perder o controle do corpo abaixo da cintura. Dirce? Se estivéssemos num país de cor britânica, a mulher seria uma cacofonia. Nurse Dirce.
"Quer um pouco de água?", diz o cirurgião, curvando o corpo em direção ao meu rosto para encenar sua postura atenciosa.
"Obrigado, estive cercado de água desde que cheguei aqui, dr. Lagomar".
Ok, vamos ao procedimento.
Não durou nada e tudo se foi. Lagomar me inundava com conversa fiada para que eu não percebesse o espetáculo sangrento que se sucedia. Nurse Dirce e Cláudia, alegres, sumiam atrás do pano verde que separava a parte de cima - funcionando ativamente - da de baixo, um cepo frio a retalhar. A psicologia toda funcionava bem, pois não estava percebendo as minúcias da operação.
Até que Lagomar terminou a sua parte, deu um "ah, mais um dia, mais um pênis cortado", arrancou as luvas e deixou a dupla de enfermeiras terminarem de costurar o rapagão.
Uma situação muito humilhante: duas mulheres trabalhando em seu padrequevedo e nada de você reagir.
Nurse Dirce foi descuidada e levantou a mão acima da cortina verde.
Deus! Quanto sangue naquela luva!
E eu que esperava vê-lo no rosto das enfermeiras quando elas erguiam a cabeça além do pano.
A aflição fez os últimos cinco minutos parecerem maiores que o resto do "procedimento". Cortaram um pedaço? Não, por favor, eu entendo que está acima da média, mas não prego esse tipo de comunismo. Socializar a riqueza, não a miséria!
O pior é que, quando tudo terminou, a outra sereia do dr. Lagomar atravessou a sala em direção ao banheiro e percebi mais uma piada pronta.
Cláudia era manca.
E eu nem podia rir muito para não abrir as ataduras do meu tutancamonzinho, enfaixado com tanto esmero por Dirce e sua colega claudicante.

CANÇÃO DO SUICÍDIO! INFÂNCIA AOS 30!

Há algumas semanas precisei apresentar um texto para a aula de Expressão Vocal no ACT. Usei parte de um pequeno monólogo para o qual nunca havia dado forma final. As pessoas parecem ter curtido e, então, não acho que faça mal transcrevê-lo aqui.

Canção do Suicídio

Monólogo, preferencialmente encenado sem objetos.

Eu tenho uma péssima coordenação motora, definitivamente sou um sujeito atrapalhado.
E isso determinou muita coisa na minha vida.
Sou do tipo que, como se diz, quando estou dançando com alguém, as pessoas correm para separar pensando que é briga.
Quando estou dançando sozinho, se alvoroçam para arrumar uma pílula e colocar embaixo da minha língua. E gritam: “tá voltando, tá voltando... podem ficar tranqüilos”.
Aprendi a amarrar os sapatos só aos oito. Até então, era meu melhor amigo que fazia isso por mim. Imaginem a cena patética. O garoto, da minha idade, da minha altura, interrompia minha passada, se ajoelhava e dava o nó nos meus cordões.
“Tá meio comprido. Tomara que eu não tropece!”
Mas o pior eram as aulas de Educação Artística lá no Colégio Municipal Dr. Raul Pinheiro Machado. Sabe onde fica? Fica no bairro da Santa Paula, que é periferia de Ponta Grossa, que é periferia do mundo.
Se o mundo realmente fosse chato, Ponta Grossa ficaria na parte escura, além do horizonte.
Imagine o Colégio Municipal Dr. Raul Pinheiro Machado!
Eu entrei direto na primeira série. Não fiz pré-escola, jardim da infância, essas coisas. Entrei seco e reto nessa prisão disfarçada. Aliás, prisão e escola são a mesma coisa.
Você está na escola cumprindo pena. Se anda na linha, sai por bom comportamento no final do ano. Se não faz tudo direitinho, fica encarcerado mais uma ou duas semanas, pelo menos. Tem até horário para tomar sol no pátio. E carcereiro! De vez em quando ele passa pelo corredor, com as mãos para trás, chacoalhando uma chave, e olha de soslaio pela fresta, como quem diz: “Muito bem, muito bem, tudo em ordem nessa cela de aula”.
A tal professora de Educação Artística mandava fazer aquelas coisas. Sabem quais, né? A coisa que mais denunciava minha incapacidade de lidar com o mundo sem derrubar nada era colar algodão nos malditos carneirinhos mimeografados. Sabem como é, né? A professora distribuía aqueles desenhos azuis, ainda molhados, e você tinha que usar a cola.
Eu olhava para o lado e via o do Carlinhos. Eu lembro o nome inteiro do desgraçado. Ele roubou o primeiro amor da minha vida. Carlos Alberto da Silva... o nome da garota eu já não tenho muita certeza, mas o Carlinhos...
Eu olhava para o carneiro do Carlos e via um verdadeiro milagre! Lanudo, branquinho, com as bordas do desenho cuidadosamente preenchidas pelo algodão. Parecia que o bicho balia para a gente: bééééééé.
O meu carneiro parecia pesteado. O algodão todo sujo, cheio de espaços vazios, e quando a professora levantava para ver, alguns chumaços despencavam. Dava até dó do animal.
Então, em determinado momento, eu resolvi meu problema de inadequação. Bem, não é que resolvi, mas decidi compensá-lo. Com sarcasmo! O sarcasmo seria minha proteção contra a crescente imagem de desastrado que eu construía.
Mas o sarcasmo me trouxe muitos problemas.
O carcereiro, por exemplo, sempre ganhava de mim quando eu tentava fugir cavando um túnel perto da quadra esportiva – porque, afinal, eu tropeçava no cadarço e o meu amigo não era mais rápido em laços do que o Tainha era com as pernas. Ele também me surpreendia pois nem sempre as cordas feitas das amarras com o agasalhos dos meus colegas ficavam firme o suficiente. De longe, eles gargalhavam ao ver eu escorregando pelo muro. Depois mudavam de humor ao perceber que as costuras dos casacos não eram assim tão resistentes.
Em todos esses casos, no entanto, eu levava uns tabefes e ficava por isso mesmo.
Quando descobri o sarcasmo, eu passei a reagir assim:
“Ei, onde você está indo, moleque?”
“Não sabe? O diretor mandou todo mundo ir lá para fora. Não escutou no auto-falante? Vão fazer uma homenagem para você! Vá chamar os outros!”
Deu certo!
Mas chamou muito a atenção e, definitivamente, passei a ganhar a antipatia de todo mundo.
E a cisma de que algo não batia bem aqui dentro.
Entendi isso justamente quando resolvi testar minha ironia em frente ao outros encarcerados. A professora de Português mandou fazer um texto sobre o campo e eu, desgostoso pelo menos com minha precária criação de ovelhas pesteadas, compus uma música que na época considerei bem singela. Pelo jeito a professora acreditou realmente na minha música e arrumou até uma psicóloga para falar comigo. Imagino também que ela tosqueava as ovelhas do Carlinhos com o barbeador do marido.
Psicóloga? Duvido que era. Um colégio municipal, no fim do mundo, que mal tinha carteiras, iria ter “psi-có-lo-ga”? Era uma secretária lá que fazia o papel, com certeza.
A música era assim:

Me dependurarei na árvore mais alta
E os meus lindos pezinhos balançarão
Quando os passarinhos chegarem fazendo festa
Os meus olhinhos castanhos comerão
Farão ninhos com fios dos meus cabelos
Irão comer até carcomer o meu nariz
Que beleza será o meu estômago
Quando os pardais pedirem bis!


A “psicóloga” me chamou e, comigo, o pobre do meu amigo.
“Por que eu vim junto?”
“Só para a gente conversar um pouco”
O que não explica nada, claro, e mesmo que explicasse nem eu nem ele prestaríamos atenção porque a tal “psicóloga” tinha bigode. Uns fios escuros e regulares, compridos, espalhados simetricamente naquele espaço enorme entre a boca e o nariz.
“Você tem problemas em casa?”
Que tipo de pergunta era essa? Claro que tenho. Quem não tem? Uma torneira que pinga a noite inteira pode passar com méritos como um grande problema. Mas eu sabia que uma resposta honesta não daria certo.
“Não, nenhum tipo de problema...”
Ahhh, disse mentalmente para mim, cale a boca. Não diga mais nada. Eu não resisti e foi aí que percebi o sarcasmo tomando conta de mim como uma doença, identificado naquele momento como uma mancha escura no cérebro. Quando terminei a frase foi como se a dra. Bigodes levantasse, erguesse uma chapa contra a luz e apontasse: “Tá vendo aqui? Nessa parte? Preciso de outros exames, mas tudo leva a crer que é maligno. Sarcasmo fronto-ociptal”.
“Na verdade, tem um probleminha de encanamento que vem judiando da gente”.
Furiosa comigo, a infeliz tentou investigar o outro menino para ver se encontrava uma pista mais clara do meu “problema”.
“E você, por acaso, foi criado pela avó?”
Me desatei a rir. Afinal, ele realmente foi criado pela avó.
No meio do riso, eu me dei conta de onde ela queria chegar. Via nós dois sempre juntos e, da porta, testemunhava o outro garoto se abaixar, ficar de joelhos na minha frente, e amarrar cuidadosamente meu tênis...
Para ela, nós éramos um casal!
Pensei em contar o motivo que eu tinha para odiar o Carlinhos, mas me ocorreu que ela poderia fazer outras conjecturas. Então deixei o sarcasmo e resolvi ser sério. E panfletário, além de tudo. “Doutora psicóloga”.
Quer dizer, um pouquinho de sarcasmo não faz mal a ninguém.
“Doutora psicóloga, a senhora acha que gays são perturbados?”
Eu não lembro o que ela respondeu, porque o meu amigo tomou um susto, deu um passo para o lado e olhou para mim:
“Você é gay?”
Eu fiquei tão nervoso com a confusão que acertei o copo com canetas que ficava na frente da sra. Freddy Mercury, e num esforço de ansiedade, tentei pegá-las ainda no ar, o que provocou um estrago tremendo. Baixei o corpo em frente ao meu amigo e fiquei na posição terrível que, hoje eu entendo, pode ter dado novas idéias para o camarada.
“Ai, ai, desculpe. Meu Deus, que besta que eu sou!”.
E os dois quase grudados na parede.
“Ai, que besta! Droga! Que vontade de morrer!”
A bigoduda pegou o bloco e anotou.
“Ei, não era de verdade. Não foi isso que eu quis dizer!”
O resultado de tudo é que chamaram minha mãe e recomendaram que eu não usasse mais tesouras, facas ou cordas para qualquer coisa que fosse.
E eu finalmente aprendi a amarrar os cadarços, acenando sem resposta para meu amigo ressabiado, do outro lado da quadra, enquanto passeava sozinho naqueles quinze minutos em que podemos tomar sol no pátio.
FIM
***
Essa história é, como quase tudo, um mix autobiográfico. É inspirada em coisas que aconteceram comigo e com o Benett em épocas diferentes. O lance da mulher do bigode e das tentativas de fuga são reais, assim como eu ter que pedir para ele amarrar meu cadarço até os 8. Só que a conversa com a Sra. Mercury aconteceu quando a gente tinha uns 16 anos, lá no Colégio Regente Feijó. E, sim, a mulher perguntou se o Bntt tinha sido criado pela avó! Eu passei uma semana acordando de madrugada para dar risada.
Claro que lembro o nome da minha primeira paixão: Ana Cláudia. Hoje ela está casada e tem duas filhas. Também não guardo rancor do Carlos, a quem não encontro há uns quinze anos. Ele sequer ganhou a Ana naquela época. Foi durante a adolescência. No fim, eu acabei namorando com ela nos primeiros meses da faculdade, uns 9 anos depois.
Aqui está outra foto constrangedora. Foi tirada no dia de nossa Primeira Comunhão. O Bntt faz o tipo galã com camisa amarela. Eu pareço um mordomo de filme de terror com essa medonha gravatinha borboleta. O altão é o célebre Ricardo Humberto, naquela época fã do Wasp e do Kiss e hoje convertido ao Islã. Meu irmão, João Felipe, está à sombra do Ricardo.
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INFÂNCIA AOS 30!

No começo do ano, escrevi umas trinta páginas de roteiro que venho burilando desde 2004. A idéia é basicamente mostrar que os problemas da infância são os mesmos que temos aos 30.
E duas semanas atrás tive mais uma comprovação disso.
Na infância, eu e o Benett montávamos expedições longuíssimas através do matagal que cercava a Santa Paula, bairro em que morávamos.
A dupla levava lanterna, cordas, garrafa de água e, certa vez, até faca cega de cozinha que o Benett sorrateiramente pegou na gaveta da Dona Odília.
Mas essas aventuras davam em nada. No máximo, a gente errava o carreiro e se perdia, demorando duas ou três horas a mais para chegar em casa, período em que inexplicavelmente chovia.
A utopia era encontrar o que na época chamávamos de "macumba" - uma maneira lírica de se referir a sacrifícios humanos em oferenda ao demônio. Hoje sabemos que há mais presentes para Satanás nos comerciais de banco do que nos singelos rituais religiosos com os quais, porventura, a gente deparava.
Pois bem, ontem aconteceu a mesma coisa.
Tínhamos que chegar à Companhia do Abração, onde começaria o curso do Antropofocus para ator cômico. A primeira coisa que o Bntt perguntou, ao entrar no carro, foi: "Você sabe como chegar lá?"
Em geral, há três frases que ninguém aguenta mais. A número 1 é: "Muito vento aí atrás?", naturalmente relacionada a motoristas solícitos. A medalha de prata: "Corrija com carinho!", ouvida com penosa frequência por quem, como eu, é professor. Completando o pódio: "Esfriou, né?", essa geralmente no elevador, acompanhada de um levantar de ombros e da mão esquerda esfregando o braço direito.
Comigo, no entanto, a frase mais comum é: "Você sabe como chegar lá?" (embora também ouça bastante: "Segure direito essa colher" e "Me solte").
Então: eu não sei chegar lá.
Mas naquele dia eu liguei umas seis vezes para os caras e pensava que sabia. Além disso perguntei para uma dúzia de pessoas durante o dia. Pensa que é mentira? Perguntei para a Diviane, no Museu de Bonecos de São José dos Pinhais. Para o professor de Direção Teatral. A três colegas de sala. Perguntei para a Débora, a quem dei carona na volta do curso vespertino. Para a Priscilla, que fez uma pesquisa na lista telefônica. E à Regina, mãe da Priscilla. No caminho, eu solicitei a ajuda de um segurança de galpão, do sujeito manco que vendia macarrão artesanal, da garota curvilínea que andava a esmo nas ruas escuras do Jardim Social (embora não tivéssemos qualquer esperança de que ela soubesse... disso, pelo menos).
Para piorar, o cheiro de algo queimando começou a tomar conta do carro. Assim como não abro correspondência e evito ler os emails de quem quer brigar ou se reconciliar comigo, tentei fingir que o odor não existia. Quando Bntt finalmente mencionou o problema, a única idéia que me ocorreu foi verificar se o freio de mão não estava puxado.
Dei três voltas obscuras para chegar, finalmente, às sete horas em ponto, na rua Paulo Idelfonso Assunção.
Felicidade! O cheiro de queimado foi embora.
Aí entramos e ficamos sentados quinze minutos, na companhia de uma garota de uns 16 anos, com rosto assustado e aparelho nos dentes.
"Oi, tudo bem? Veio para o curso?"
Ela respondeu duas vezes para eu entender. E a segunda ainda foi nessa altura:
"É. Eu quero fazer o curso para lidar com a timidez".
Os camaradas do Antropofocus andavam aflitos, de um lado para o outro, até que finalmente sentaram nos sofás, esfregando as mãos. Um deles usava desses casacos de lhama que o Cassiano passou a adotar depois que foi a Machu Pichu.
"Vamos dar mais uns minutos e ver se chega mais gente".
Eu e Bntt, experientes em fracassos, já havíamos sacado que não chegara a grupo mínimo, mas para a menina foi uma surpresa:
"Minha prima vinha, mas ela não veio".
Outros quinze minutos depois, todos desistiram e os humoristas, cabisbaixos, prometeram ligar para a gente "no dia seguinte ou em seguida". Dizem que o curso regular é um sucesso e ouvi boas recomendações de várias pessoas ligadas ao teatro. Mas precisávamos – e obviamente não conseguimos – de pelo menos mais cinco interessados para viabilizar o intensivo de férias.
"Mãe, pode vir me buscar? Não vai ter".
O fato é que, depois de eu ligar para o Benett e fazer um discurso sobre o corpo do ator, exigindo dele que levasse roupas confortáveis para a oficina e advertindo sobre a necessidade de preparo físico e noção de espaço para a arte do palco, nós nos perdemos na volta, paramos numa pizzaria e enchemos a pança com rodelas de cebola.


PIMENTA MAGNÉTICA! Capítulos 1 A 9

1. DIQUE DE BUGIGANGAS!

Parado em frente ao balcão de minha cozinha, com o cotovelo sobre a geladeira, eu ajeitava a pimenta magnética que invariavelmente derrubo quando vou tirar a caixa de leite das grades internas da porta. Percebi que além do briquebraque grudento, minha mãe tinha deixado um pedaço de papel com um número de telefone.
Dona Neli tem um gosto curioso para enfeites. Gosta de polinizá-lo, especialmente nesse jardim confuso que é meu apartamento. Silenciosa como um castor, ela vai deixando pedaços de seus brinquedos pela minha mobília. Tem uma estátua de gesso que representa alguma divindade ou estereótipo hindu em frente aos dicionários da estante. Ao lado, um aparador para a cinza dos defumadores - outra de suas predileções: a espiritualidade light de tarôs simplificados, aromas tranquilizantes, simpatias e pequenas bruxarias de butique.
No dia das mães ela é que veio me visitar (Ponta Grossa, entende? Não dá para ir sempre) e fomos passear na brilhosa feira do Largo da Ordem. Encantou-se com uma estátua de durepoxi que imitava madeira, representação de um mago soturno com expressão sábia - sabedoria materializada em pedrinhas coloridas no lugar dos olhos. Na mão esquerda, um cajado imponente. Eu disse: "Mas, mãe..." Ela não prestava atenção no que eu falava, um hábito que eu poderia chamar de tipicamente feminino se não tivesse adquirido também, especialmente em relação às suas intermináveis conversas pelo telefone. "Tem certeza que quer levar essa estátua?" Sem olhar para mim, encantada com o artesanato, barganhou com o vendedor e chegou mesmo a mentir que ele já havia se comprometido a dar um generoso desconto. Estátua na sacola, saiu a passos largos em direção ao meu carro. "Quero comer um bolinho de bacalhau". Eu parei um segundo, toquei o seu ombro e apontei com o nariz para a sacola: "Mas, mãe, esse aí é o Gandalf!"
A palavra não queria dizer nada para ela - ignorância que não é prejuízo muito grande. Restou imaginar qual seria minha reação quando eu voltasse a visitá-la, em Ponta Grossa, e percebesse, ao lado da televisão, uma mesinha com um São Benedito, um porta-retratos meu e do meu irmão e uma estátua de Ian McKellen na fantasia boba do Peter Jackson. Qual seria a próxima tacada? Bonecos do Coisa?
Peguei o número da porta, derrubei a alcachofra magnética desta vez, e disquei. Carlito, disseram do outro lado. Expliquei que o telefone estava na minha geladeira, o camarada naturalmente não tinha a menor idéia de quem eu era. "O que você faz, Carlito?" Sou escultor, ele disse. Ahn, então Dona Neli teria encomendado alguma coisa? Expliquei, meio sem ânimo (como ele vai saber?) o episódio e... ele lembrava. "Ah, sua mãe comprou o Gandalf. Você que pagou, né?". Não sei porque, mas me senti bem otário com essa precisão de memória. "Então, ela encomendou uma outra peça - a que a gente tinha lá estava quebradinha".
Era o Mestre Yoda.

2. ROCOCÓ NO BLOOMSDAY!

Eu estava escorado na geladeira. Tinha aberto aquela porta para pegar leite. Basicamente é para isso que eu uso a geladeira: guardar leite e refrigerante e a comida congelada que sobra. Antes de me preocupar com o número de telefone, pensava que meu pai faz aniversário daqui a quatro dias, no Bloomsday - o que é duplamente um sinal sem sentido, pois, na verdade, Seu João nasceu em outra data de 1945 e o cartorário errou o registro. Hoje, nativo convertido ao litoral catarinense, vive de chinelos, é eternamente bronzeado e jamais passaria por irlandês, muito menos moderno.
A carreira que meu pai poderia ter trilhado no rocaille parece ter sido interrompida por um comentário insensível que escapou da minha feição zombeteira: desde que ele casou com a Hildegard, alemã de dotes na pequena arte dos objetos de conchas, começou a se aventurar em animaizinhos costurados dos despojos do mar. Eu realmente adorei essa tartaruga-besouro-alucinado que ele fez. O tórax deve ser uma nóz, o que lembra um cérebro. O casco se abre em asas negras que expõem as indecências do tronco-cérebro daquele bicho. Os olhos são arregalados na ponta do pescoço parmigianino. Sim, Piçarras é a Ilha do Dr. Moreau Folquening!
O problema é que, segundo a Dona Hildegard, meu pai desistiu de esculpir seus monstrinhos, desacorçoado com minhas gargalhadas.

3. ALGUMAS REPARAÇÕES!

Antes de abrir a geladeira e pegar o leite para preparar o café, pensava em voz alta sobre outra coisa que não era James Joyce nem de longe. Foi passar distraidamente os olhos pelo calendário e receber rajadas de 16 de junho na memória enquanto me ocupava da cozinha que me despertou. Foi calcular meus afazeres na semana, pensar no dia em que viajaria para o aniversário do Seu João, no logística para apanhar meu irmão, em São Francisco do Sul, foi isso tudo que me levou a recuperar o drama da simpática aberração de conchas na minha estante.
O problema foi trocado para o do número de telefone entre os enfeites magnéticos porque a irritação com a inevitável queda da pimenta de plástico, da alcachofra de gesso (toda machucada, a esta altura), do prato de queijo com facão pintados sem muito cuidado, virou uma ação quase sem gosto, quase automática. Eu apenas me abaixo, continuo falando ou me concentrando em alguma coisa, pego as bugigangas e recoloco mecanicamente na porta da geladeira.
Ao mesmo tempo, como estava dizendo, eu pensava em voz alta. Havia uma interlocutora à porta, encostada perto do microondas. O ritual seguinte consistia em aquecer o leite e aproveitar esse minuto organizando, lado a lado, o vidro de açúcar e o café solúvel. Sinto-me imprestável por admitir, mas ando recorrendo ao café instantâneo. Uma covardia, pois não é café de verdade. Numa noite após o teatro, meu amigo Zeca explicou que a água precisa estar de 96 a 98 graus! Devemos cobrir o pó despejando a água pelo meio até que atinja o cume da borra, arremetida ao filtro de pano. O aroma, meu Deus, o aroma! Mas como vou saber que a água está a "96 ou 98 graus"?
O drama do café também estava em pauta. No entanto, a conversa predominante era sobre a produção de minha peça. Tive um claro bloqueio criativo nas últimas semanas e não conseguia resolver um conflito na trama. Não quero colocar um telefone, pois vivo dizendo que é a saída mais fácil para costurar buracos no texto. Será teimosia? O telefone faz sentido, simbolicamente. Devo incluir fotos ou sinais da vida exterior do personagem masculino? Na minha cabeça é redundância - e é óbvio que eu me pergunto se o solitário processo de criação literária é incapaz de supor claramente a compreensão do público. É redundante porque o objeto se repetiria ou porque, simplesmente, não consigo separar o universo de meus personagens, amplamente codificados na minha cabeça, de suas ações expressas na peça?
O roteirista Douglas Salgado, que ministrou aula para meus alunos da pós em Cinema sexta e sábado, me deu conselho que resolveu algo da minha angústia de dramaturgo neófito: deixe os atores ensaiarem, ouça eles falarem. Você chegará à solução.
Essa preocupação, entretanto, me deixou pistas sobre a condução de meu processo criativo.
Tenho me visto como alguém ligado ao mundo das artes visuais, especialmente em movimento, e música. Passei parte da minha carreira como jornalista, até agora, sendo visto como alguém que escreve sobre cinema ou jazz, muito embora tenha evitado cadernos culturais e construído meu trabalho com outro tipo de reportagem mais mundana, digamos assim. Arrogante, quando entrei na faculdade lá em 1991, disse na primeira aula que meu sonho era fazer uma revista sobre cinema ou sobre jazz (nem lembro direito). O que não esqueço é que tenho até agora o constrangedor arrependimento de ter exclamado, prepotente às tampas, que queria fazer isso porque nenhuma publicação brasileira prestava (não que eu solte fogos hoje em dia, mas aos 18 toda opinião decidida é tola, mesmo quando é verdade).
Veja, não sou músico e não tenho talento, o que conferi estudando contrabaixo, saxofone, teoria musical por um sofrido período. O que já me deixa inseguro, ainda que muitos venham a dizer que não é preciso ter engravidado para ser parteiro (não é o caso de alongar o assunto, mesmo porque caminho cada vez mais decidido a uma interpretação múltipla da arte, sem gêneros ou limitação de linguagem. Acho que há cada vez menos sentido em separar escultura de pintura, música de design, história oral de teatro...).
O fato é que, num surto existencial, percebi que nenhuma outra forma de expressão é mais marcante na minha vida do que a literatura. Por que não falo tanto a respeito? Por que não me sinto tão íntimo? Talvez porque ainda carregue o vislumbre de uma aura que não se desmancha, pelo menos para mim. Literatura ainda é o mais difícil dos mistérios.
"É a literatura, o problema...", eu disse para a Priscilla enquanto usava a mesma colher para o café e para o açúcar e, atrapalhado, ao devolver a caixa de leite babada à geladeira, ouvia a porta bater e a pimenta magnética quicar no chão.
"Do que você está falando?"
Ah, é! Eu comecei falando comigo e com o besouro-jabuti-dinossauro e com o Gandalf e com o telefone do escultor e com Ulysses e telepaticamente com meu irmão, em cuja casa e carro há adesivos do Guevara, menções a Chico Buarque e estrelas do PT. Pensava que o Felipe mora perto do meu pai, mas obviamente não com ele. E que minha família parece uma franquia de fast food barato distribuída em quatro cidades da região Sul do país, com características que a singularizam - como objetos kitsch espalhados pelo lar - mas com diferenças marcantes que deveriam dar cabelos brancos ao proprietário da marca, se ele se importasse ou meramente existisse.
Mas eu conversava, mesmo, com Ian McEwan.
"Reparação", eu disse.
Literatura é a expressão mais constante da minha vida, apesar das milhares de horas que aproveito com música, cinema e o redescoberto teatro. Apesar dos anos que lecionei História da Arte e me fartei de analisar, cada vez mais minuciosamente, As Anunciações medievais, A Dúvida de Tomé de Caravaggio, a Vênus de Willendorf ou os empacotamentos de Christo,Edward Hopper ou Fujita ou o estatuário anônimo do barroco brasileiro do século 17 ou sabe Deus o quê.
A verdade é que livros fazem parte da minha vida desde os quatro anos.
"Ouça isso!", eu disse e fui buscar, lá na página 53 do romance de McEwan.

4. REPARAÇÃO!

Eu devolvi a pimenta magnética ao seu santuário na porta de geladeira; dei uma boa olhada nos outros objetos que, justiça seja feita, são bons para anteparar bilhetes, contas, etc. Descobri que uma tampa enorme de Pepsi, colada lá, é um abridor de garrafas!
E sorvi meu café! Ah, meu Deus, eu tolero até mesmo café solúvel (que, sonolento, PASSEI pelo filtro, há mais de uma década, num apartamento que eu assombrava vários dias da semana, em Ponta Grossa, e que morava a Denise. Sacudi-a na cama e perguntei: "é normal que a água escorra tão rápido do coador?" A espertinha, mais tarde, não se comovia com minha dificuldade de acordar e observava, vibrante, eu "adoçar" o café com sal)!
Abri a bonita edição da Companhia das Letras. Depois de namorar muito aquela capa, sei agora que se trata do esboço da garotinha Briony, protagonista e mais claro alter-ego do autor. Briony será escritora reconhecida na velhice. Agora, na infância, passa todo seu tempo livre elaborando contos. Ela gosta das palavras: vive com o dicionário a tira-colo e tira dele expressões cheias de significado estético. Usa-as com grande originalidade. Diz que a testa franzida do rei eram "hieróglifos" de reprovação; descreve a cavalgada "célebre" de uma princesa. Briony prepara uma peça, sua primeira, e se debate com a pouca vontade e talento dos pequenos primos, engajados no projeto por imposição dos pais.
Vou ler o parágrafo, mas, antes, não resisto ao aroma. Podemos reconhecer uma editora pelo cheiro do papel e da cola que usam na costura dos livros. A mistura entre a suave aspereza do pólen, típico da editora e que me custou umas semanas a mais no lançamento do meu primeiro livro (o primeiro tem que ser em papel pólen!), e o perfume que se espalha quase matematicamente da curva no fundo interno das páginas às orelhas... enfiar o nariz na brochura é tão automático quanto recolher os enfeites magnéticos do chão.
Reparação de Ian McEwan, traduzido com grande louvor por Paulo Henriques Britto.
Briony, estafada com os atrasos dos ensaios (o primo mais novo urinara na cama e, como castigo, passara a manhã lavando os lençóis; um dos gêmeos não parava de ir ao banheiro e a prima, mais velha, era insuportavelmente condescendente!), tenta respirar mais tranquilamente e espia pela da janela. Testemunha cena insólita. Não sabe que se trata, na verdade, do desfecho da recuperação de um vaso de afeição familiar. Eis um trecho:

"A sequência era ilógica - a cena de afogamento, seguida do salvamento, deveria ocorrer antes do pedido de casamento. Foi a última coisa que Briony pensou antes de aceitar que não conseguia compreender e que só lhe restava assistir. Sem que ninguém a visse, do andar de cima, à luz reveladora de um dia de sol, ela estava tendo acesso privilegiado ao comportamento adulto, a ritos e convenções sobre os quais nada sabia, ainda. Sem dúvida aquilo era o tipo de coisa que acontecia. No momento exato em que a cabeça de sua irmã irrompeu na superfície - graças a Deus! - Briony pela primeira vez se deu conta, de modo ainda tímido, de que para ela agora não poderia mais haver castelos nem princesas como nas histórias de fada, e sim a estranheza do aqui e agora, o que se passava entre as pessoas, as pessoas comuns que ela conhecia, e o poder que uma tinha sobre a outra, e como era fácil entender tudo errado, completamente errado. Cecília havia saído do lago e estava ajeitando a saia, e com dificuldade vestia a blusa sobre a pele encharcada. Virou-se abruptamente e pegou, na sombra profunda projetada pelo muro da fonte, um vaso de flores que Briony não havia visto antes, e veio com ele em direção à casa. Não trocou nenhuma palavra com Robbie, nem sequer olhou em sua direção. Agora ele estava olhando para dentro d´água, e também ele caminhava com passos rápidos, sem dúvida satisfeito, contornando a casa. De repente, o cenário estava vazio; o trecho molhado no chão onde Cecilia havia saído do lago era o único sinal de que alguma coisa havia acontecido".

Tem algo que só acontece na literatura. E ela, poderosa e dominadora, costuma desenhar uma sombra inescapável na maneira como concebemos todas as outras expressões. Quando todo mundo destruía seu último filme, Glauber Rocha desdenhava. Dizia que os críticos não haviam entendido A Idade da Terra porque estavam atrás de literatura filmada. Imagem e som constituem meu trabalho, bradava o diretor.
Na forma e no conteúdo, padoxalmente, a grande literatura de Ian McEwan me devolveu alguma lucidez.
E o bloqueio se foi.

5. SOLDAR A PIMENTA!

Ajeitar a pimenta de plástico, pela segunda vez consecutiva, no látex branco-acinzentado da geladeira, moveu meu sentimento de revolta contra o tédio.
Algum crítico elogiou a performance de Peter Sellers em Um Convidado bem Trapalhão. O ator teria uma forma espírita de interpretar, pois derrubava coisas sem encostar nelas. Gostaria de ter uma avaliação tão generosa da minha falta de coordenação motora.
Parece que estou constantemente embrulhado em uma espécie de papel mata-mosca e que, no emaranhado dos pequenos objetos cotidianos, minhas articulações esquentam, um calor febril que sobe pelas juntas e se aloja na base de minha nuca.
Esse cipó inextricável está expresso nas unhas roídas, nos pedaços irregulares de pele que circulam as cutículas, nos nós nervosamente agredidos dos dedos. Está nas correspondências jamais abertas, na conta de banco que eu nunca encerro, no carnê do IPTU que não tenho coragem de quitar – veja, não consigo ter vontade de ir até o banco, apenas isso. Não abro mensagens de pessoas que podem querer brigar ou se reconciliar comigo.
É a maneira abrupta e tensa que lido com os pequenos objetos, como os talheres, como as canetas, como as chaves, como... como... os imãs de geladeira. Por que eles caem? Ah, se eu jogasse todos para além da janela, numa atitude intempestiva, me livrasse desses nós febris do meu corpo quebrando, arremessando, gritando!
Isso resolveria o fato de que não consigo me alongar? Não consigo me alongar. Que diabo! Os professores de Educação Física poderiam ter me ajudado a ser mais desenvolto ao invés de ganhar o salário sentados à sombra e fingindo que contavam quantas voltas dávamos na quadra mal pintada de handebol. Quando remava, há uns dois anos, meu instrutor gastava quase uma hora nos meus alongamentos. Creiam-me: nem a corrida cronometrada em volta do lago Iguaçu, nem as duas horas e meia no barco eram tão parecidos com a via sacra do que a rotina de levar minha perna direita sobre a esquerda até que o pé tocasse o chão sem que meu ombro desgrudasse da marcação!
Faço um impaciente aquecimento-alongamento antes de devolver a pimenta magnética à porta.
Preciso me concentrar. Farei com o mesmo cuidado que o Mestre Miaggi dispensava à poda de seus bonsais. Sem tremer. Meu Deus, como eu tremo! Meu pai treme e eu pensava que era resultado das homéricas bebedeiras que o acompanharam durante décadas. Mas meu irmão, que raramente bebe, treme tanto quanto eu. Que nervos inseguros e exaltados herdei!
Será que isso definiu o que eu faria da minha vida? Será que eu seria, digamos, soldador, caso minhas mãos fossem firmes? Bem, hoje estou convencido que quero a dramaturgia. Então tremer é uma indicação – não, uma contra-indicação – que me empurra para escrever.
Mas veja: meu tio Lauro, mais criativo que eu, é soldador. É uma espécie de McGyver dos objetos metálicos. Ontem vi um barco que ele mesmo fez. Uma canoa de ferro, desmontável, que, segundo o próprio, funciona perfeitamente. Tem motor, fogão de duas bocas, espaços para as varas de pescar, proteção contra chuva, almofadas e até uma churrasqueira.
Enquanto tentava entender a fabricação, contei ao Lauro sobre um problema de minha peça: a atriz precisa deitar numa cama que está na vertical – ela tem que “grudar” na parede. No meio do papo, ele disse que tinha uma idéia para um texto teatral. Ouça:
Um sujeito fica soldando peças de ferro atrás de uma cortina de vidro. O barulho do esmerilho e da solda, aliado aos clarões das faíscas impede que ouçamos o que a família do protagonista discute na boca do palco (ou num espaço qualquer). Da platéia, surdos pela movimentação metálica e elétrica, conseguimos apenas ver as bocas se movendo, gestos ambíguos e olhares afetados. Quando ele desliga os mecanismos e se aproxima da família, suspeita das atitudes excessivamente condescendentes. E começa a entrar numa paranóia de que estão planejando matá-lo.
Genial! Percebe as possibilidades dramáticas e cênicas desse argumento?
E meu tio não treme


6. VERMELHA E ÚMIDA!

Tiro todos os outros imãs e pouso-os no chão. Vou respirar fundo e levar cada um com precisão marcial para o tecido longo e liso ao lado da cavidade frontal da geladeira.
Primeiro a pimenta magnética.
Para outro tempo.
Com o polegar, afundo um pouco a pele. Estico o dedo mínimo e me aproximo do umbigo. À luz alaranjada, recortada pelas hastes da veneziana, pêlos mínimos embranquecidos são capazes de produzir suaves sombras num padrão regular como um campo de centeio.
A pimenta está na metade do caminho entre o umbigo e o primeiro aclive do monte de Vênus. Cuido bem disso, como se se tratasse de um transtorno compulsivo. Quero que o arco formado pelo imã seja perpendicular ao traço vertical da vagina.
A respiração, agora um pouco mais tensa, atrapalha um pouco meu trabalho. Mas isso não me aborrece - pelo contrário! O desafio da precisão contém minha ansiedade e posso aproveitar mais o papel de torturador.
Os outros imãs estão aqui, a dois passos da geladeira, no chão da cozinha. Fico agachado e passo lentamente os dedos sobre as superfícies dos enfeites. Há uma miniatura de vaso de flores, um tanto arredondada, parece ideal.
Tomo-a e aperto o cenho para perceber o sol sumindo, vermelho como a pimenta, no último vão da cortina. Sinto um som longíquo, regular e massivo: é a máquina de lavar roupas, lá do outro lado do apartamento, no anexo da cozinha.
O som da lavadora se compõe em ondas pulsantes. Com concentração, percebemos o golpe leve e contínuo contra a parede. O redemoinho de roupas vez e outra faz ecoar a água que escapa da centrifugação. Calças e camisas encharcadas se açoitam em dura, mas perfeita coreografia.
O vaso de flores magnético cabe aqui, no côncavo entre o osso esquerdo que separa o quadril e o declive que se funda na misteriosa sombra até o púbis.
Coloco meu polegar na boca e o umideço. Agora traço uma linha com minha saliva. Ela cruza o ventre até o outro osso oblíqüo. Um sorriso decora seu rosto e fico alguns segundos absorto no mito do ilimitado prazer feminino.
Olhar para o agora pálido brilho da pele umedecida me despertou sede incontrolável. Meu controle de ansiedade está prestes a sofrer um revés.
Mas, espere! Ainda se trata de um exercício de concentração. Agora que vejo o soluço provocado pelo dedo riscando o platô aveludado, me admiro com o imã escorregando para o sul do corpo. Então é essa minha missão: apesar dos meus lábios avançando pela carne, flores e pimenta devem se manter inalteradas, embora aquecidas pela crescente temperatura desse ventre perfeito.
O som da máquina de lavar parece mais alto do que nunca. Socando a parede, torcendo as roupas com tamanha rapidez que os pequenos vácuos se preenchem de água, logo em seguida expulsa como se pisássemos com força numa poça rasa.
A lavadora conclui seu trabalho, o coração desacelera um pouco e a lentidão pode voltar a dominar meus movimentos.
Meus lábios estão entreabertos. De olhos fechados sinto o aroma do ambiente que começa a ser explorado pela ponta do meu nariz - em contato com a pele, se arrasta na direção do umbigo, enquanto meu sopro sôfrego agita os pequenos pêlos, como fazem as hélices do helicóptero segundos antes do aparelho pousar.
As imagens escorrem pelo meu estômago, tomam meu ventre e minhas coxas.

7. ONZE ANDARES!

Não posso negar que meu quarto é aconchegante. E tenho uma mistura de orgulho e vergonha por confirmar que fui eu, sim, que pensei em tudo.
A vergonha brota da decepção com o personagem que adotei, um camarada desorganizado, atrapalhado, masculino no sentido que parecia haver nos filmes do John Hughes nos anos 80 ou daquela casa-garagem de Armação Ilimitada.
Fui eu quem criou a tinta esverdeada das paredes. Fiz questão do lustre com ventilador. Equipei com todos os eletrodomésticos que pareciam um sonho impossível na minha infância.
Enchi as gavetas com CDs e uma cômoda com alguns dos vinis de capas nostálgicas.
Três pequenos pôsteres de Edward Hopper alinham-se à esquerda do banheiro. Há um cartaz de Casablanca sobre a cabeceira e outro de Charlie Parker na parede lateral.
Liguei o grande televisor a quatro caixas de som e, ponto crucial do meu pedido pueril ao Anjo da Guarda, tenho um equipamento que alguns chamam de “luz obediente” anexado à cama. Logo ao lado, um criado-mudo onde a gaveta serve de depósito para pequenos objetos úteis e, na parte inferior, alguns livros – hoje, infalivelmente, Reparação.
Escolhi falar do elemento que mais me agrada por último porque ele tem papel importante nessa trama.
No escritório, as venezianas são azuis da cor predominante na cadeira de rodinhas e na mesa do computador. As paredes são de um tipo amarelo-mostarda, que também misturei até chegar no ponto que lembrava o desenho do Ligeirinho. Fico satisfeito em aceitar a qualificação de “ousado”, pois, creiam-me, deu certo.
De qualquer forma, o tecido da cortina é robusto, parece inalterável e consciente de seu ângulo desfavorável à trajetória do sol. O azul é sempre denso, sólido, confiável, previsível. Seu humor só suspira durante as chuvas, pois as sombras das gotas grossas desenham padrões estranhamente regulares nas longas tiras entreabertas. O reflexo da água grada o antes impassível azulado e me faz lembrar Victor Vassarely.
Mas no quarto, as venezianas são claras. Nos dias iluminados, como hoje, as sombras das hastes ganham movimento sinuoso – especialmente da metade da tarde para o poente. Elas se tornam silhuetas libidinosas, balançando seus corpos delgados em compasso quase imperceptível, rodeadas do fogo branco solar. À medida que a noite se aproxima, os fios que delimitam os retângulos de pano escurecem, ficam finos e negros e, enfim, poucos segundos antes dos postes e carros acenderem, ganham um vermelho vivo e provocante.
É para esse quadro efêmero que olhei ao deitar ao seu lado. Olhei porque checava quanto tempo de luz teria para aproveitar sua paisagem de pequenas sombras. E olhei porque naquela posição, tendo erguido momentaneamente minha cabeça de seu ventre, poderia acrescentar um novo membro na família dos imãs magnéticos que deitava em sua pele.
Percebi também que os pelos ouriçados nos antebraços significavam um tantinho de frio, problema que seria resolvido facilmente se não tivéssemos nos entregado ao quase tântrico ritual de beijos ternos e vagarosos.
Por isso optei pela solução mais conservadora. Ergui minhas costelas devagar, com os olhos no seu rosto um pouco apreensivo, apoiando-me no cotovelo, e, milagrosamente sem tropeçar ou acertar o joelho na quina da cama, me pus em pé aos pés. Ela franze o cenho, delicada, como se interpretasse uma decepção, embora seu sentimento verdadeiro seja a curiosidade. Aproveito para vislumbrar seu corpo estendido no colchão – sei que esboço um sorriso de satisfação e sei que parar ali, naquele lugar, provocando nela súbita timidez, mas enorme auto-erotização, compensa minha rápida ausência entre os lençóis.
Viro o corpo, dou um passo, atravesso a mão entre as hastes da cortina e fecho a janela. Paro poucos segundos com a palma e os dedos esticados no vidro e me perco entre as silhuetas dos prédios solitários a leste. Décimo primeiro andar. A imagem das lajotas lá embaixo, grandes, azuis, circulando uma escola de inglês, risca minha mente e deixa uma brisa gelada na boca de meu estômago. Empurro a veneziana, abro uma pequena fresta, pego uma tampa de caneta sobre a cômoda e, como hoje é sábado, solto no espaço como um pacote bêbado.
Antes que o objeto atinja o chão magnético, puxado como numa instalação interativa do Fluxus, me viro para ela e admiro novamente seu corpo, perpendicular, trêmulo, curioso. É isso!
“A serpente!”, eu digo.

8. A SERPENTE!

“Vivi os últimos anos na espera, na espera que alguns sonhos virassem realidade. Com o passar dos anos, me sobraram cada vez menos sonhos até que recentemente apenas um par sustentasse minha coragem para continuar viva”.
“No começo do ano passado, um desses dois sonhos se foi. Ela tinha quinze anos e sua verdadeira dor não era a doença mental. O coração era fraco e qualquer médico saberia que tantos remédios tão fortes...”
“Por tantos anos arrastei minha filha pela saúde pública esperando que alguém, que Deus fizesse um milagre e me desse a chance de ter uma filha que conversasse comigo, que me desse netos, que cuidasse de mim”.
“Mas ela nunca falou, nunca andou e desde a primeira menstruação, desmaiava, nem sabia dizer onde doía”.
“Ela teve um ataque no começo do ano passado e ficou um dia inteiro na UTI. Meu filho foi o último a vê-la no quarto, cheia de aparelhos. Eu não tive coragem. Ela olhou para ele e chorou como se estivesse se despedindo”.
“Agora estou livre disso. Quando minha filha morreu, eu me tornei livre. Livre da penúltima esperança que pesava nos meus ombros”.

Essa é a primeira fala de minha peça, que escrevi originalmente para ajudar num exercício promovido pela Faculdade de Artes do Paraná e que tomou uma proporção cada vez maior, me promovendo de dramaturgo iniciante para diretor virgem.
Agora, em pré-produção, lido com deliciosos problemas – como achar soluções teatrais para os conflitos na trama.
Trata-se da angústia de uma mulher que passa a meia-idade, está sozinha e quer se livrar de uma vez por todas do marido ausente.
No início, influenciado por A Mulher Desiludida, de Simone Dubuvoir, e por Plínio Marcos, me entreguei inconscientemente à estética realista, com pouquíssimos elementos de cena, todos reproduções fiéis de móveis e outros objetos. Na verdade, não havia me preocupando muito com isso, afinal o problema não era meu. O diretor que se virasse. Mas como não consigo ficar calado, especulei de forma despretensiosa sobre as possibilidades cênicas e acabei sendo “promovido”.
A crueza de Oração para um Pé-de-Chinelo acabou passando para outra influência sazonal, a de Max Reinhardt, que, embora Lotte Eisner negue, é associado quase sem dúvidas ao Expressionismo no teatro e no cinema. Trocando em miúdos, eu agora queria que a angústia da protagonista se revelasse em móveis distorcidos, fora de esquadro, desconfortáveis.
Como sou megalomaníaco, não pensei em outro truque que não fosse mandar construir móveis enormes, tortos, e dar tridimensionalidade ao cenário pintado de O Gabinete do Dr. Caligari.
Levantei do sofá e saí correndo nu para o escritório. Aparentemente acostumada com meus rompantes – ou preguiçosa demais para protestar –, ela se enrolou no cobertor e arrastou o corpo amolecido atrás de mim. Não sei se para entender o que estava acontecendo ou para rir do inevitável tralalá de vendedor de bijou que um corpo masculino sem cueca aparenta quando está em movimento.
Peguei o pincel atômico, que era a única caneta que funcionava naquele pote azul circulado por uma fita-lembrança de Aparecida do Norte (outra marcação de território da minha mãe!) e desenhei esse esboço.
“Ela tem que deitar nessa cama e se segurar para não escorregar. Isso vai valorizar a sensação de desconforto!”
“O que é isso aqui?”, ela perguntou e se curvou para levantar a barra do cobertor, em que pisava, o que desnudou seu seio direito e revelou, no lado externo ao mamilo, o molde evidente de parte da minha arcada superior. Também me abaixei para ajudá-la, mas, na verdade, tentava enxergar o trecho da pele escondida pela sombra do pano. Queria ver se apareciam marcas da arcada inferior. Por um segundo, estiquei o maxilar e tentei calcular se minha mordida estava ok – felizmente nunca usei aparelho nos dentes, mas nunca deixei de desconfiar dos dentistas que me diagnosticavam. Entre os complexos da adolescência (como ser orelhudo, narigudo ou muito magro) vivia com a sensação de que meus dentes ficavam para fora quando eu sorria despreocupadamente.
“É a cômoda. Precisamos de um ótimo carpinteiro, capaz de fazer gavetas desproporcionais que funcionem!” Mais tarde, quando a Soraya se incorporou ao grupo para, ao lado da Elis, se encarregar da direção de arte, fiquei sabendo que deve haver um artesão com tais prerrogativas. Na época que criou o palco do Teatro da Caixa, Soraya teria se surpreendido com a precisão e capricho de um camarada que atua na cidade. Naquele momento eu pensei como um administrador de talentos: “Isso é bom, coisas boas só funcionam quando temos o envolvimento de técnicos capazes de fazer coisas inverossímeis”.
Mas eu abandonei a idéia.
Abandonei exatamente agora. Misturo em minha mente o cheiro característico do breu na boca do palco do Teatro HSBC com o aroma agridoce dos fluídos de brilho opaco que iluminam a delicada sobreposição de tecidos que revelam seu clitóris.
Há umas duas ou três semanas vi lá no Palácio Avenida uma montagem de A Serpente, a última peça de Nelson Rodrigues, com a Débora Falabela no elenco. O que restou do espetáculo, para mim, foi, sobretudo, o cenário em forma de grande caixote com dois ambientes. No meio deles, um corredor que conduz a lajotas azuis, inicialmente manchadas de sangue. O grande achado foi transformar a parede em calçada na cena final, a da queda de Guida pela janela do apartamento. Depois de empurrada pelo marido, a intérprete aparece pendurada numa haste metálica, a luz se apaga rapidamente e já vemos seu corpo “estatelado” no “chão”. Mas se trata de uma parede, na vertical. Grande sacada!
A tampa da caneta foi uma dica de meu inconsciente! “A Serpente, lembra do final?” Peguei-a pela mão e puxei seu corpo trêmulo para fora da cama. Os imãs magnéticos se espalharam pelo lençol. Tateei o tecido e recolhi a pimenta magnética. Tropeçando no escuro crescente do início da noite, chegamos à cozinha. Ela parou, encostada à porta, e, apesar de ainda mais distraída do que eu, lembrou de ligar a luz.
“Está vendo essa pimenta magnética?” Esperei a resposta em afetada pose teatral, apesar de claramente ser uma pergunta retórica, afinal ela não só estava curiosa sobre o destino do imã como já contava com o plástico grudado em seu ventre por muito mais tempo. “Essa pimenta é a nossa personagem. Lembra da posição em que você estava na cama, quando levantei para fechar a janela? Você encolheu um pouco as pernas e levou as costas da mão esquerda à face, em posição quase fetal. Então, imagine que a geladeira é a cama, assim mesmo nessa posição de ângulo reto em relação ao chão...”
A atriz precisa grudar, como uma pimenta magnética, em uma cama pintada na parede!
Dancei feliz com a idéia, corri para seu corpo e o ergui na bancada em frente à pia. Apertei as coxas, abrindo as pernas com agressividade. Puxei a banqueta e sentei para me servir da refeição comemorativa.

9. A COR DO BALCÃO!

A superfície do balcão não é tão branca assim. Derramei café, leite, açúcar, sal inúmeras vezes e as nódoas, mesmo que limpas com cuidado, vão se incorporando à película brilhosa da madeira. Só conseguimos ver que já não é tão alva se algo branco de verdade se enquadra naquele espaço, como uma folha de sulfite ou uma xícara nova de porcelana.
Sua pele não é tão imaculada assim, pois posso ver as marcas deixadas pelo já distante verão. Vejo as pintas, as sombras formadas pelos ossos, marcas sutis.
Uma corrente de ar vem pelo corredor, desliza por baixo da única porta que dá acesso a meu apartamento, atravessa a pequena entrada e ganha corpo na cozinha.
Com as dobras esticadas sobre o móvel frio, a temperatura da excitação não vence um arrepio que pude sentir brotando do vão entre suas nádegas e se alastrando pelo contorno dos lábios da vagina, pela coluna e músculos intercostais até se alojar na nuca, como uma pancada invisível cuja inércia se faz sentir mais que o toque.
Junto à sua pele, o balcão ganha cor. Quando afasto a boca e descanso os braços apoiados em suas coxas, aproveito para passar a língua pelos meus lábios, bem devagar, e depois sentir o palato, evitando ao máximo o movimento da glote, para então relaxar e engolir a química formada pela minha saliva e seu gozo.
Os frisos irregulares de seus lábios pulsam, talvez por causa do movimento quase automático que faz com o quadril, empurrando o corpo para meu rosto. Por causa dessa vibração, o pequeno acúmulo dos líquidos se redesenha e escorre delicadamente para o gradativo baixo relevo sob o clitóris.
Procuro espaço, ao norte do monte de Vênus, que se encaixe no meu polegar. Pressiono a digital entre os cortes avermelhados e vou descendo o dedo com cuidado monástico. No caminho, tento recolher, empurrar, reter o máximo. Afundo dentro de você e trago para a luz na esperança de que venha encharcado. Quando vejo minhas articulações acesas, sinto a compulsão de levar o polegar à boca... me contenho e deito-o no balcão. Esfrego a pele desenhando as extremidades das nádegas.
Mais um componente na fabricação da cor que alimenta a cozinha.
“Por trás”.
Levanto seu corpo e, a três passos atravesso a porta que separa a cozinha da lavanderia. Com o ombro esquerdo, arrasto os imãs da porta da geladeira até arremessá-los ao chão. Quando me amparo na porta, acabo com a pimenta magnética entre os dedos. Giro o dorso contra a janela e apoio seu ventre na máquina de lavar.
Grudado no suor da minha palma, o enfeite se transfere para suas costas, curvadas, quando agarro com força sua cintura.
“Venha”.
O gemido se interrompe e com a boca escancarada, os olhos fechados e o cenho franzido, a mão grudada em seus cabelos, minha respiração suspensa, tudo o que se ouvia eram as pancadas de seu joelho na superfície da máquina e o som da pele de meu ventre e das minhas pernas estalando no seu corpo.
E outras pancadas. Dessa vez rudes e impacientes.
Tente não ouvir, tente não ouvir.
Mas como o alarde não era respondido, uma voz rouca, nervosa, sobrepõe-se ao nosso movimento.
“Ei, eu sei que tem gente aí!”
Você esmorece, sua carne muda de temperatura, o frio já não se confunde com tesão e até o magnetismo da pimenta se vai. O bibelô salta de suas costas.
“Meu Deus”, murmura.
Tem certeza?
“Meu Deus”.
Pode ser engano. Calma.
“Meu Deus”.
O que eu vou fazer?
“Sei que tem gente aí. Abram!”.
Da cozinha, mesmo com a luz acesa, dá para ver o movimento pela fresta sob a porta de entrada.