BOP!

Victor E. Folquening escreve, você lê e diz alguma coisa

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

Grupo de gestores para soluções estratégicas nas Faculdades Integradas do Brasil

domingo, julho 23, 2006

PIMENTA MAGNÉTICA! Capítulos 1 A 9

1. DIQUE DE BUGIGANGAS!

Parado em frente ao balcão de minha cozinha, com o cotovelo sobre a geladeira, eu ajeitava a pimenta magnética que invariavelmente derrubo quando vou tirar a caixa de leite das grades internas da porta. Percebi que além do briquebraque grudento, minha mãe tinha deixado um pedaço de papel com um número de telefone.
Dona Neli tem um gosto curioso para enfeites. Gosta de polinizá-lo, especialmente nesse jardim confuso que é meu apartamento. Silenciosa como um castor, ela vai deixando pedaços de seus brinquedos pela minha mobília. Tem uma estátua de gesso que representa alguma divindade ou estereótipo hindu em frente aos dicionários da estante. Ao lado, um aparador para a cinza dos defumadores - outra de suas predileções: a espiritualidade light de tarôs simplificados, aromas tranquilizantes, simpatias e pequenas bruxarias de butique.
No dia das mães ela é que veio me visitar (Ponta Grossa, entende? Não dá para ir sempre) e fomos passear na brilhosa feira do Largo da Ordem. Encantou-se com uma estátua de durepoxi que imitava madeira, representação de um mago soturno com expressão sábia - sabedoria materializada em pedrinhas coloridas no lugar dos olhos. Na mão esquerda, um cajado imponente. Eu disse: "Mas, mãe..." Ela não prestava atenção no que eu falava, um hábito que eu poderia chamar de tipicamente feminino se não tivesse adquirido também, especialmente em relação às suas intermináveis conversas pelo telefone. "Tem certeza que quer levar essa estátua?" Sem olhar para mim, encantada com o artesanato, barganhou com o vendedor e chegou mesmo a mentir que ele já havia se comprometido a dar um generoso desconto. Estátua na sacola, saiu a passos largos em direção ao meu carro. "Quero comer um bolinho de bacalhau". Eu parei um segundo, toquei o seu ombro e apontei com o nariz para a sacola: "Mas, mãe, esse aí é o Gandalf!"
A palavra não queria dizer nada para ela - ignorância que não é prejuízo muito grande. Restou imaginar qual seria minha reação quando eu voltasse a visitá-la, em Ponta Grossa, e percebesse, ao lado da televisão, uma mesinha com um São Benedito, um porta-retratos meu e do meu irmão e uma estátua de Ian McKellen na fantasia boba do Peter Jackson. Qual seria a próxima tacada? Bonecos do Coisa?
Peguei o número da porta, derrubei a alcachofra magnética desta vez, e disquei. Carlito, disseram do outro lado. Expliquei que o telefone estava na minha geladeira, o camarada naturalmente não tinha a menor idéia de quem eu era. "O que você faz, Carlito?" Sou escultor, ele disse. Ahn, então Dona Neli teria encomendado alguma coisa? Expliquei, meio sem ânimo (como ele vai saber?) o episódio e... ele lembrava. "Ah, sua mãe comprou o Gandalf. Você que pagou, né?". Não sei porque, mas me senti bem otário com essa precisão de memória. "Então, ela encomendou uma outra peça - a que a gente tinha lá estava quebradinha".
Era o Mestre Yoda.

2. ROCOCÓ NO BLOOMSDAY!

Eu estava escorado na geladeira. Tinha aberto aquela porta para pegar leite. Basicamente é para isso que eu uso a geladeira: guardar leite e refrigerante e a comida congelada que sobra. Antes de me preocupar com o número de telefone, pensava que meu pai faz aniversário daqui a quatro dias, no Bloomsday - o que é duplamente um sinal sem sentido, pois, na verdade, Seu João nasceu em outra data de 1945 e o cartorário errou o registro. Hoje, nativo convertido ao litoral catarinense, vive de chinelos, é eternamente bronzeado e jamais passaria por irlandês, muito menos moderno.
A carreira que meu pai poderia ter trilhado no rocaille parece ter sido interrompida por um comentário insensível que escapou da minha feição zombeteira: desde que ele casou com a Hildegard, alemã de dotes na pequena arte dos objetos de conchas, começou a se aventurar em animaizinhos costurados dos despojos do mar. Eu realmente adorei essa tartaruga-besouro-alucinado que ele fez. O tórax deve ser uma nóz, o que lembra um cérebro. O casco se abre em asas negras que expõem as indecências do tronco-cérebro daquele bicho. Os olhos são arregalados na ponta do pescoço parmigianino. Sim, Piçarras é a Ilha do Dr. Moreau Folquening!
O problema é que, segundo a Dona Hildegard, meu pai desistiu de esculpir seus monstrinhos, desacorçoado com minhas gargalhadas.

3. ALGUMAS REPARAÇÕES!

Antes de abrir a geladeira e pegar o leite para preparar o café, pensava em voz alta sobre outra coisa que não era James Joyce nem de longe. Foi passar distraidamente os olhos pelo calendário e receber rajadas de 16 de junho na memória enquanto me ocupava da cozinha que me despertou. Foi calcular meus afazeres na semana, pensar no dia em que viajaria para o aniversário do Seu João, no logística para apanhar meu irmão, em São Francisco do Sul, foi isso tudo que me levou a recuperar o drama da simpática aberração de conchas na minha estante.
O problema foi trocado para o do número de telefone entre os enfeites magnéticos porque a irritação com a inevitável queda da pimenta de plástico, da alcachofra de gesso (toda machucada, a esta altura), do prato de queijo com facão pintados sem muito cuidado, virou uma ação quase sem gosto, quase automática. Eu apenas me abaixo, continuo falando ou me concentrando em alguma coisa, pego as bugigangas e recoloco mecanicamente na porta da geladeira.
Ao mesmo tempo, como estava dizendo, eu pensava em voz alta. Havia uma interlocutora à porta, encostada perto do microondas. O ritual seguinte consistia em aquecer o leite e aproveitar esse minuto organizando, lado a lado, o vidro de açúcar e o café solúvel. Sinto-me imprestável por admitir, mas ando recorrendo ao café instantâneo. Uma covardia, pois não é café de verdade. Numa noite após o teatro, meu amigo Zeca explicou que a água precisa estar de 96 a 98 graus! Devemos cobrir o pó despejando a água pelo meio até que atinja o cume da borra, arremetida ao filtro de pano. O aroma, meu Deus, o aroma! Mas como vou saber que a água está a "96 ou 98 graus"?
O drama do café também estava em pauta. No entanto, a conversa predominante era sobre a produção de minha peça. Tive um claro bloqueio criativo nas últimas semanas e não conseguia resolver um conflito na trama. Não quero colocar um telefone, pois vivo dizendo que é a saída mais fácil para costurar buracos no texto. Será teimosia? O telefone faz sentido, simbolicamente. Devo incluir fotos ou sinais da vida exterior do personagem masculino? Na minha cabeça é redundância - e é óbvio que eu me pergunto se o solitário processo de criação literária é incapaz de supor claramente a compreensão do público. É redundante porque o objeto se repetiria ou porque, simplesmente, não consigo separar o universo de meus personagens, amplamente codificados na minha cabeça, de suas ações expressas na peça?
O roteirista Douglas Salgado, que ministrou aula para meus alunos da pós em Cinema sexta e sábado, me deu conselho que resolveu algo da minha angústia de dramaturgo neófito: deixe os atores ensaiarem, ouça eles falarem. Você chegará à solução.
Essa preocupação, entretanto, me deixou pistas sobre a condução de meu processo criativo.
Tenho me visto como alguém ligado ao mundo das artes visuais, especialmente em movimento, e música. Passei parte da minha carreira como jornalista, até agora, sendo visto como alguém que escreve sobre cinema ou jazz, muito embora tenha evitado cadernos culturais e construído meu trabalho com outro tipo de reportagem mais mundana, digamos assim. Arrogante, quando entrei na faculdade lá em 1991, disse na primeira aula que meu sonho era fazer uma revista sobre cinema ou sobre jazz (nem lembro direito). O que não esqueço é que tenho até agora o constrangedor arrependimento de ter exclamado, prepotente às tampas, que queria fazer isso porque nenhuma publicação brasileira prestava (não que eu solte fogos hoje em dia, mas aos 18 toda opinião decidida é tola, mesmo quando é verdade).
Veja, não sou músico e não tenho talento, o que conferi estudando contrabaixo, saxofone, teoria musical por um sofrido período. O que já me deixa inseguro, ainda que muitos venham a dizer que não é preciso ter engravidado para ser parteiro (não é o caso de alongar o assunto, mesmo porque caminho cada vez mais decidido a uma interpretação múltipla da arte, sem gêneros ou limitação de linguagem. Acho que há cada vez menos sentido em separar escultura de pintura, música de design, história oral de teatro...).
O fato é que, num surto existencial, percebi que nenhuma outra forma de expressão é mais marcante na minha vida do que a literatura. Por que não falo tanto a respeito? Por que não me sinto tão íntimo? Talvez porque ainda carregue o vislumbre de uma aura que não se desmancha, pelo menos para mim. Literatura ainda é o mais difícil dos mistérios.
"É a literatura, o problema...", eu disse para a Priscilla enquanto usava a mesma colher para o café e para o açúcar e, atrapalhado, ao devolver a caixa de leite babada à geladeira, ouvia a porta bater e a pimenta magnética quicar no chão.
"Do que você está falando?"
Ah, é! Eu comecei falando comigo e com o besouro-jabuti-dinossauro e com o Gandalf e com o telefone do escultor e com Ulysses e telepaticamente com meu irmão, em cuja casa e carro há adesivos do Guevara, menções a Chico Buarque e estrelas do PT. Pensava que o Felipe mora perto do meu pai, mas obviamente não com ele. E que minha família parece uma franquia de fast food barato distribuída em quatro cidades da região Sul do país, com características que a singularizam - como objetos kitsch espalhados pelo lar - mas com diferenças marcantes que deveriam dar cabelos brancos ao proprietário da marca, se ele se importasse ou meramente existisse.
Mas eu conversava, mesmo, com Ian McEwan.
"Reparação", eu disse.
Literatura é a expressão mais constante da minha vida, apesar das milhares de horas que aproveito com música, cinema e o redescoberto teatro. Apesar dos anos que lecionei História da Arte e me fartei de analisar, cada vez mais minuciosamente, As Anunciações medievais, A Dúvida de Tomé de Caravaggio, a Vênus de Willendorf ou os empacotamentos de Christo,Edward Hopper ou Fujita ou o estatuário anônimo do barroco brasileiro do século 17 ou sabe Deus o quê.
A verdade é que livros fazem parte da minha vida desde os quatro anos.
"Ouça isso!", eu disse e fui buscar, lá na página 53 do romance de McEwan.

4. REPARAÇÃO!

Eu devolvi a pimenta magnética ao seu santuário na porta de geladeira; dei uma boa olhada nos outros objetos que, justiça seja feita, são bons para anteparar bilhetes, contas, etc. Descobri que uma tampa enorme de Pepsi, colada lá, é um abridor de garrafas!
E sorvi meu café! Ah, meu Deus, eu tolero até mesmo café solúvel (que, sonolento, PASSEI pelo filtro, há mais de uma década, num apartamento que eu assombrava vários dias da semana, em Ponta Grossa, e que morava a Denise. Sacudi-a na cama e perguntei: "é normal que a água escorra tão rápido do coador?" A espertinha, mais tarde, não se comovia com minha dificuldade de acordar e observava, vibrante, eu "adoçar" o café com sal)!
Abri a bonita edição da Companhia das Letras. Depois de namorar muito aquela capa, sei agora que se trata do esboço da garotinha Briony, protagonista e mais claro alter-ego do autor. Briony será escritora reconhecida na velhice. Agora, na infância, passa todo seu tempo livre elaborando contos. Ela gosta das palavras: vive com o dicionário a tira-colo e tira dele expressões cheias de significado estético. Usa-as com grande originalidade. Diz que a testa franzida do rei eram "hieróglifos" de reprovação; descreve a cavalgada "célebre" de uma princesa. Briony prepara uma peça, sua primeira, e se debate com a pouca vontade e talento dos pequenos primos, engajados no projeto por imposição dos pais.
Vou ler o parágrafo, mas, antes, não resisto ao aroma. Podemos reconhecer uma editora pelo cheiro do papel e da cola que usam na costura dos livros. A mistura entre a suave aspereza do pólen, típico da editora e que me custou umas semanas a mais no lançamento do meu primeiro livro (o primeiro tem que ser em papel pólen!), e o perfume que se espalha quase matematicamente da curva no fundo interno das páginas às orelhas... enfiar o nariz na brochura é tão automático quanto recolher os enfeites magnéticos do chão.
Reparação de Ian McEwan, traduzido com grande louvor por Paulo Henriques Britto.
Briony, estafada com os atrasos dos ensaios (o primo mais novo urinara na cama e, como castigo, passara a manhã lavando os lençóis; um dos gêmeos não parava de ir ao banheiro e a prima, mais velha, era insuportavelmente condescendente!), tenta respirar mais tranquilamente e espia pela da janela. Testemunha cena insólita. Não sabe que se trata, na verdade, do desfecho da recuperação de um vaso de afeição familiar. Eis um trecho:

"A sequência era ilógica - a cena de afogamento, seguida do salvamento, deveria ocorrer antes do pedido de casamento. Foi a última coisa que Briony pensou antes de aceitar que não conseguia compreender e que só lhe restava assistir. Sem que ninguém a visse, do andar de cima, à luz reveladora de um dia de sol, ela estava tendo acesso privilegiado ao comportamento adulto, a ritos e convenções sobre os quais nada sabia, ainda. Sem dúvida aquilo era o tipo de coisa que acontecia. No momento exato em que a cabeça de sua irmã irrompeu na superfície - graças a Deus! - Briony pela primeira vez se deu conta, de modo ainda tímido, de que para ela agora não poderia mais haver castelos nem princesas como nas histórias de fada, e sim a estranheza do aqui e agora, o que se passava entre as pessoas, as pessoas comuns que ela conhecia, e o poder que uma tinha sobre a outra, e como era fácil entender tudo errado, completamente errado. Cecília havia saído do lago e estava ajeitando a saia, e com dificuldade vestia a blusa sobre a pele encharcada. Virou-se abruptamente e pegou, na sombra profunda projetada pelo muro da fonte, um vaso de flores que Briony não havia visto antes, e veio com ele em direção à casa. Não trocou nenhuma palavra com Robbie, nem sequer olhou em sua direção. Agora ele estava olhando para dentro d´água, e também ele caminhava com passos rápidos, sem dúvida satisfeito, contornando a casa. De repente, o cenário estava vazio; o trecho molhado no chão onde Cecilia havia saído do lago era o único sinal de que alguma coisa havia acontecido".

Tem algo que só acontece na literatura. E ela, poderosa e dominadora, costuma desenhar uma sombra inescapável na maneira como concebemos todas as outras expressões. Quando todo mundo destruía seu último filme, Glauber Rocha desdenhava. Dizia que os críticos não haviam entendido A Idade da Terra porque estavam atrás de literatura filmada. Imagem e som constituem meu trabalho, bradava o diretor.
Na forma e no conteúdo, padoxalmente, a grande literatura de Ian McEwan me devolveu alguma lucidez.
E o bloqueio se foi.

5. SOLDAR A PIMENTA!

Ajeitar a pimenta de plástico, pela segunda vez consecutiva, no látex branco-acinzentado da geladeira, moveu meu sentimento de revolta contra o tédio.
Algum crítico elogiou a performance de Peter Sellers em Um Convidado bem Trapalhão. O ator teria uma forma espírita de interpretar, pois derrubava coisas sem encostar nelas. Gostaria de ter uma avaliação tão generosa da minha falta de coordenação motora.
Parece que estou constantemente embrulhado em uma espécie de papel mata-mosca e que, no emaranhado dos pequenos objetos cotidianos, minhas articulações esquentam, um calor febril que sobe pelas juntas e se aloja na base de minha nuca.
Esse cipó inextricável está expresso nas unhas roídas, nos pedaços irregulares de pele que circulam as cutículas, nos nós nervosamente agredidos dos dedos. Está nas correspondências jamais abertas, na conta de banco que eu nunca encerro, no carnê do IPTU que não tenho coragem de quitar – veja, não consigo ter vontade de ir até o banco, apenas isso. Não abro mensagens de pessoas que podem querer brigar ou se reconciliar comigo.
É a maneira abrupta e tensa que lido com os pequenos objetos, como os talheres, como as canetas, como as chaves, como... como... os imãs de geladeira. Por que eles caem? Ah, se eu jogasse todos para além da janela, numa atitude intempestiva, me livrasse desses nós febris do meu corpo quebrando, arremessando, gritando!
Isso resolveria o fato de que não consigo me alongar? Não consigo me alongar. Que diabo! Os professores de Educação Física poderiam ter me ajudado a ser mais desenvolto ao invés de ganhar o salário sentados à sombra e fingindo que contavam quantas voltas dávamos na quadra mal pintada de handebol. Quando remava, há uns dois anos, meu instrutor gastava quase uma hora nos meus alongamentos. Creiam-me: nem a corrida cronometrada em volta do lago Iguaçu, nem as duas horas e meia no barco eram tão parecidos com a via sacra do que a rotina de levar minha perna direita sobre a esquerda até que o pé tocasse o chão sem que meu ombro desgrudasse da marcação!
Faço um impaciente aquecimento-alongamento antes de devolver a pimenta magnética à porta.
Preciso me concentrar. Farei com o mesmo cuidado que o Mestre Miaggi dispensava à poda de seus bonsais. Sem tremer. Meu Deus, como eu tremo! Meu pai treme e eu pensava que era resultado das homéricas bebedeiras que o acompanharam durante décadas. Mas meu irmão, que raramente bebe, treme tanto quanto eu. Que nervos inseguros e exaltados herdei!
Será que isso definiu o que eu faria da minha vida? Será que eu seria, digamos, soldador, caso minhas mãos fossem firmes? Bem, hoje estou convencido que quero a dramaturgia. Então tremer é uma indicação – não, uma contra-indicação – que me empurra para escrever.
Mas veja: meu tio Lauro, mais criativo que eu, é soldador. É uma espécie de McGyver dos objetos metálicos. Ontem vi um barco que ele mesmo fez. Uma canoa de ferro, desmontável, que, segundo o próprio, funciona perfeitamente. Tem motor, fogão de duas bocas, espaços para as varas de pescar, proteção contra chuva, almofadas e até uma churrasqueira.
Enquanto tentava entender a fabricação, contei ao Lauro sobre um problema de minha peça: a atriz precisa deitar numa cama que está na vertical – ela tem que “grudar” na parede. No meio do papo, ele disse que tinha uma idéia para um texto teatral. Ouça:
Um sujeito fica soldando peças de ferro atrás de uma cortina de vidro. O barulho do esmerilho e da solda, aliado aos clarões das faíscas impede que ouçamos o que a família do protagonista discute na boca do palco (ou num espaço qualquer). Da platéia, surdos pela movimentação metálica e elétrica, conseguimos apenas ver as bocas se movendo, gestos ambíguos e olhares afetados. Quando ele desliga os mecanismos e se aproxima da família, suspeita das atitudes excessivamente condescendentes. E começa a entrar numa paranóia de que estão planejando matá-lo.
Genial! Percebe as possibilidades dramáticas e cênicas desse argumento?
E meu tio não treme


6. VERMELHA E ÚMIDA!

Tiro todos os outros imãs e pouso-os no chão. Vou respirar fundo e levar cada um com precisão marcial para o tecido longo e liso ao lado da cavidade frontal da geladeira.
Primeiro a pimenta magnética.
Para outro tempo.
Com o polegar, afundo um pouco a pele. Estico o dedo mínimo e me aproximo do umbigo. À luz alaranjada, recortada pelas hastes da veneziana, pêlos mínimos embranquecidos são capazes de produzir suaves sombras num padrão regular como um campo de centeio.
A pimenta está na metade do caminho entre o umbigo e o primeiro aclive do monte de Vênus. Cuido bem disso, como se se tratasse de um transtorno compulsivo. Quero que o arco formado pelo imã seja perpendicular ao traço vertical da vagina.
A respiração, agora um pouco mais tensa, atrapalha um pouco meu trabalho. Mas isso não me aborrece - pelo contrário! O desafio da precisão contém minha ansiedade e posso aproveitar mais o papel de torturador.
Os outros imãs estão aqui, a dois passos da geladeira, no chão da cozinha. Fico agachado e passo lentamente os dedos sobre as superfícies dos enfeites. Há uma miniatura de vaso de flores, um tanto arredondada, parece ideal.
Tomo-a e aperto o cenho para perceber o sol sumindo, vermelho como a pimenta, no último vão da cortina. Sinto um som longíquo, regular e massivo: é a máquina de lavar roupas, lá do outro lado do apartamento, no anexo da cozinha.
O som da lavadora se compõe em ondas pulsantes. Com concentração, percebemos o golpe leve e contínuo contra a parede. O redemoinho de roupas vez e outra faz ecoar a água que escapa da centrifugação. Calças e camisas encharcadas se açoitam em dura, mas perfeita coreografia.
O vaso de flores magnético cabe aqui, no côncavo entre o osso esquerdo que separa o quadril e o declive que se funda na misteriosa sombra até o púbis.
Coloco meu polegar na boca e o umideço. Agora traço uma linha com minha saliva. Ela cruza o ventre até o outro osso oblíqüo. Um sorriso decora seu rosto e fico alguns segundos absorto no mito do ilimitado prazer feminino.
Olhar para o agora pálido brilho da pele umedecida me despertou sede incontrolável. Meu controle de ansiedade está prestes a sofrer um revés.
Mas, espere! Ainda se trata de um exercício de concentração. Agora que vejo o soluço provocado pelo dedo riscando o platô aveludado, me admiro com o imã escorregando para o sul do corpo. Então é essa minha missão: apesar dos meus lábios avançando pela carne, flores e pimenta devem se manter inalteradas, embora aquecidas pela crescente temperatura desse ventre perfeito.
O som da máquina de lavar parece mais alto do que nunca. Socando a parede, torcendo as roupas com tamanha rapidez que os pequenos vácuos se preenchem de água, logo em seguida expulsa como se pisássemos com força numa poça rasa.
A lavadora conclui seu trabalho, o coração desacelera um pouco e a lentidão pode voltar a dominar meus movimentos.
Meus lábios estão entreabertos. De olhos fechados sinto o aroma do ambiente que começa a ser explorado pela ponta do meu nariz - em contato com a pele, se arrasta na direção do umbigo, enquanto meu sopro sôfrego agita os pequenos pêlos, como fazem as hélices do helicóptero segundos antes do aparelho pousar.
As imagens escorrem pelo meu estômago, tomam meu ventre e minhas coxas.

7. ONZE ANDARES!

Não posso negar que meu quarto é aconchegante. E tenho uma mistura de orgulho e vergonha por confirmar que fui eu, sim, que pensei em tudo.
A vergonha brota da decepção com o personagem que adotei, um camarada desorganizado, atrapalhado, masculino no sentido que parecia haver nos filmes do John Hughes nos anos 80 ou daquela casa-garagem de Armação Ilimitada.
Fui eu quem criou a tinta esverdeada das paredes. Fiz questão do lustre com ventilador. Equipei com todos os eletrodomésticos que pareciam um sonho impossível na minha infância.
Enchi as gavetas com CDs e uma cômoda com alguns dos vinis de capas nostálgicas.
Três pequenos pôsteres de Edward Hopper alinham-se à esquerda do banheiro. Há um cartaz de Casablanca sobre a cabeceira e outro de Charlie Parker na parede lateral.
Liguei o grande televisor a quatro caixas de som e, ponto crucial do meu pedido pueril ao Anjo da Guarda, tenho um equipamento que alguns chamam de “luz obediente” anexado à cama. Logo ao lado, um criado-mudo onde a gaveta serve de depósito para pequenos objetos úteis e, na parte inferior, alguns livros – hoje, infalivelmente, Reparação.
Escolhi falar do elemento que mais me agrada por último porque ele tem papel importante nessa trama.
No escritório, as venezianas são azuis da cor predominante na cadeira de rodinhas e na mesa do computador. As paredes são de um tipo amarelo-mostarda, que também misturei até chegar no ponto que lembrava o desenho do Ligeirinho. Fico satisfeito em aceitar a qualificação de “ousado”, pois, creiam-me, deu certo.
De qualquer forma, o tecido da cortina é robusto, parece inalterável e consciente de seu ângulo desfavorável à trajetória do sol. O azul é sempre denso, sólido, confiável, previsível. Seu humor só suspira durante as chuvas, pois as sombras das gotas grossas desenham padrões estranhamente regulares nas longas tiras entreabertas. O reflexo da água grada o antes impassível azulado e me faz lembrar Victor Vassarely.
Mas no quarto, as venezianas são claras. Nos dias iluminados, como hoje, as sombras das hastes ganham movimento sinuoso – especialmente da metade da tarde para o poente. Elas se tornam silhuetas libidinosas, balançando seus corpos delgados em compasso quase imperceptível, rodeadas do fogo branco solar. À medida que a noite se aproxima, os fios que delimitam os retângulos de pano escurecem, ficam finos e negros e, enfim, poucos segundos antes dos postes e carros acenderem, ganham um vermelho vivo e provocante.
É para esse quadro efêmero que olhei ao deitar ao seu lado. Olhei porque checava quanto tempo de luz teria para aproveitar sua paisagem de pequenas sombras. E olhei porque naquela posição, tendo erguido momentaneamente minha cabeça de seu ventre, poderia acrescentar um novo membro na família dos imãs magnéticos que deitava em sua pele.
Percebi também que os pelos ouriçados nos antebraços significavam um tantinho de frio, problema que seria resolvido facilmente se não tivéssemos nos entregado ao quase tântrico ritual de beijos ternos e vagarosos.
Por isso optei pela solução mais conservadora. Ergui minhas costelas devagar, com os olhos no seu rosto um pouco apreensivo, apoiando-me no cotovelo, e, milagrosamente sem tropeçar ou acertar o joelho na quina da cama, me pus em pé aos pés. Ela franze o cenho, delicada, como se interpretasse uma decepção, embora seu sentimento verdadeiro seja a curiosidade. Aproveito para vislumbrar seu corpo estendido no colchão – sei que esboço um sorriso de satisfação e sei que parar ali, naquele lugar, provocando nela súbita timidez, mas enorme auto-erotização, compensa minha rápida ausência entre os lençóis.
Viro o corpo, dou um passo, atravesso a mão entre as hastes da cortina e fecho a janela. Paro poucos segundos com a palma e os dedos esticados no vidro e me perco entre as silhuetas dos prédios solitários a leste. Décimo primeiro andar. A imagem das lajotas lá embaixo, grandes, azuis, circulando uma escola de inglês, risca minha mente e deixa uma brisa gelada na boca de meu estômago. Empurro a veneziana, abro uma pequena fresta, pego uma tampa de caneta sobre a cômoda e, como hoje é sábado, solto no espaço como um pacote bêbado.
Antes que o objeto atinja o chão magnético, puxado como numa instalação interativa do Fluxus, me viro para ela e admiro novamente seu corpo, perpendicular, trêmulo, curioso. É isso!
“A serpente!”, eu digo.

8. A SERPENTE!

“Vivi os últimos anos na espera, na espera que alguns sonhos virassem realidade. Com o passar dos anos, me sobraram cada vez menos sonhos até que recentemente apenas um par sustentasse minha coragem para continuar viva”.
“No começo do ano passado, um desses dois sonhos se foi. Ela tinha quinze anos e sua verdadeira dor não era a doença mental. O coração era fraco e qualquer médico saberia que tantos remédios tão fortes...”
“Por tantos anos arrastei minha filha pela saúde pública esperando que alguém, que Deus fizesse um milagre e me desse a chance de ter uma filha que conversasse comigo, que me desse netos, que cuidasse de mim”.
“Mas ela nunca falou, nunca andou e desde a primeira menstruação, desmaiava, nem sabia dizer onde doía”.
“Ela teve um ataque no começo do ano passado e ficou um dia inteiro na UTI. Meu filho foi o último a vê-la no quarto, cheia de aparelhos. Eu não tive coragem. Ela olhou para ele e chorou como se estivesse se despedindo”.
“Agora estou livre disso. Quando minha filha morreu, eu me tornei livre. Livre da penúltima esperança que pesava nos meus ombros”.

Essa é a primeira fala de minha peça, que escrevi originalmente para ajudar num exercício promovido pela Faculdade de Artes do Paraná e que tomou uma proporção cada vez maior, me promovendo de dramaturgo iniciante para diretor virgem.
Agora, em pré-produção, lido com deliciosos problemas – como achar soluções teatrais para os conflitos na trama.
Trata-se da angústia de uma mulher que passa a meia-idade, está sozinha e quer se livrar de uma vez por todas do marido ausente.
No início, influenciado por A Mulher Desiludida, de Simone Dubuvoir, e por Plínio Marcos, me entreguei inconscientemente à estética realista, com pouquíssimos elementos de cena, todos reproduções fiéis de móveis e outros objetos. Na verdade, não havia me preocupando muito com isso, afinal o problema não era meu. O diretor que se virasse. Mas como não consigo ficar calado, especulei de forma despretensiosa sobre as possibilidades cênicas e acabei sendo “promovido”.
A crueza de Oração para um Pé-de-Chinelo acabou passando para outra influência sazonal, a de Max Reinhardt, que, embora Lotte Eisner negue, é associado quase sem dúvidas ao Expressionismo no teatro e no cinema. Trocando em miúdos, eu agora queria que a angústia da protagonista se revelasse em móveis distorcidos, fora de esquadro, desconfortáveis.
Como sou megalomaníaco, não pensei em outro truque que não fosse mandar construir móveis enormes, tortos, e dar tridimensionalidade ao cenário pintado de O Gabinete do Dr. Caligari.
Levantei do sofá e saí correndo nu para o escritório. Aparentemente acostumada com meus rompantes – ou preguiçosa demais para protestar –, ela se enrolou no cobertor e arrastou o corpo amolecido atrás de mim. Não sei se para entender o que estava acontecendo ou para rir do inevitável tralalá de vendedor de bijou que um corpo masculino sem cueca aparenta quando está em movimento.
Peguei o pincel atômico, que era a única caneta que funcionava naquele pote azul circulado por uma fita-lembrança de Aparecida do Norte (outra marcação de território da minha mãe!) e desenhei esse esboço.
“Ela tem que deitar nessa cama e se segurar para não escorregar. Isso vai valorizar a sensação de desconforto!”
“O que é isso aqui?”, ela perguntou e se curvou para levantar a barra do cobertor, em que pisava, o que desnudou seu seio direito e revelou, no lado externo ao mamilo, o molde evidente de parte da minha arcada superior. Também me abaixei para ajudá-la, mas, na verdade, tentava enxergar o trecho da pele escondida pela sombra do pano. Queria ver se apareciam marcas da arcada inferior. Por um segundo, estiquei o maxilar e tentei calcular se minha mordida estava ok – felizmente nunca usei aparelho nos dentes, mas nunca deixei de desconfiar dos dentistas que me diagnosticavam. Entre os complexos da adolescência (como ser orelhudo, narigudo ou muito magro) vivia com a sensação de que meus dentes ficavam para fora quando eu sorria despreocupadamente.
“É a cômoda. Precisamos de um ótimo carpinteiro, capaz de fazer gavetas desproporcionais que funcionem!” Mais tarde, quando a Soraya se incorporou ao grupo para, ao lado da Elis, se encarregar da direção de arte, fiquei sabendo que deve haver um artesão com tais prerrogativas. Na época que criou o palco do Teatro da Caixa, Soraya teria se surpreendido com a precisão e capricho de um camarada que atua na cidade. Naquele momento eu pensei como um administrador de talentos: “Isso é bom, coisas boas só funcionam quando temos o envolvimento de técnicos capazes de fazer coisas inverossímeis”.
Mas eu abandonei a idéia.
Abandonei exatamente agora. Misturo em minha mente o cheiro característico do breu na boca do palco do Teatro HSBC com o aroma agridoce dos fluídos de brilho opaco que iluminam a delicada sobreposição de tecidos que revelam seu clitóris.
Há umas duas ou três semanas vi lá no Palácio Avenida uma montagem de A Serpente, a última peça de Nelson Rodrigues, com a Débora Falabela no elenco. O que restou do espetáculo, para mim, foi, sobretudo, o cenário em forma de grande caixote com dois ambientes. No meio deles, um corredor que conduz a lajotas azuis, inicialmente manchadas de sangue. O grande achado foi transformar a parede em calçada na cena final, a da queda de Guida pela janela do apartamento. Depois de empurrada pelo marido, a intérprete aparece pendurada numa haste metálica, a luz se apaga rapidamente e já vemos seu corpo “estatelado” no “chão”. Mas se trata de uma parede, na vertical. Grande sacada!
A tampa da caneta foi uma dica de meu inconsciente! “A Serpente, lembra do final?” Peguei-a pela mão e puxei seu corpo trêmulo para fora da cama. Os imãs magnéticos se espalharam pelo lençol. Tateei o tecido e recolhi a pimenta magnética. Tropeçando no escuro crescente do início da noite, chegamos à cozinha. Ela parou, encostada à porta, e, apesar de ainda mais distraída do que eu, lembrou de ligar a luz.
“Está vendo essa pimenta magnética?” Esperei a resposta em afetada pose teatral, apesar de claramente ser uma pergunta retórica, afinal ela não só estava curiosa sobre o destino do imã como já contava com o plástico grudado em seu ventre por muito mais tempo. “Essa pimenta é a nossa personagem. Lembra da posição em que você estava na cama, quando levantei para fechar a janela? Você encolheu um pouco as pernas e levou as costas da mão esquerda à face, em posição quase fetal. Então, imagine que a geladeira é a cama, assim mesmo nessa posição de ângulo reto em relação ao chão...”
A atriz precisa grudar, como uma pimenta magnética, em uma cama pintada na parede!
Dancei feliz com a idéia, corri para seu corpo e o ergui na bancada em frente à pia. Apertei as coxas, abrindo as pernas com agressividade. Puxei a banqueta e sentei para me servir da refeição comemorativa.

9. A COR DO BALCÃO!

A superfície do balcão não é tão branca assim. Derramei café, leite, açúcar, sal inúmeras vezes e as nódoas, mesmo que limpas com cuidado, vão se incorporando à película brilhosa da madeira. Só conseguimos ver que já não é tão alva se algo branco de verdade se enquadra naquele espaço, como uma folha de sulfite ou uma xícara nova de porcelana.
Sua pele não é tão imaculada assim, pois posso ver as marcas deixadas pelo já distante verão. Vejo as pintas, as sombras formadas pelos ossos, marcas sutis.
Uma corrente de ar vem pelo corredor, desliza por baixo da única porta que dá acesso a meu apartamento, atravessa a pequena entrada e ganha corpo na cozinha.
Com as dobras esticadas sobre o móvel frio, a temperatura da excitação não vence um arrepio que pude sentir brotando do vão entre suas nádegas e se alastrando pelo contorno dos lábios da vagina, pela coluna e músculos intercostais até se alojar na nuca, como uma pancada invisível cuja inércia se faz sentir mais que o toque.
Junto à sua pele, o balcão ganha cor. Quando afasto a boca e descanso os braços apoiados em suas coxas, aproveito para passar a língua pelos meus lábios, bem devagar, e depois sentir o palato, evitando ao máximo o movimento da glote, para então relaxar e engolir a química formada pela minha saliva e seu gozo.
Os frisos irregulares de seus lábios pulsam, talvez por causa do movimento quase automático que faz com o quadril, empurrando o corpo para meu rosto. Por causa dessa vibração, o pequeno acúmulo dos líquidos se redesenha e escorre delicadamente para o gradativo baixo relevo sob o clitóris.
Procuro espaço, ao norte do monte de Vênus, que se encaixe no meu polegar. Pressiono a digital entre os cortes avermelhados e vou descendo o dedo com cuidado monástico. No caminho, tento recolher, empurrar, reter o máximo. Afundo dentro de você e trago para a luz na esperança de que venha encharcado. Quando vejo minhas articulações acesas, sinto a compulsão de levar o polegar à boca... me contenho e deito-o no balcão. Esfrego a pele desenhando as extremidades das nádegas.
Mais um componente na fabricação da cor que alimenta a cozinha.
“Por trás”.
Levanto seu corpo e, a três passos atravesso a porta que separa a cozinha da lavanderia. Com o ombro esquerdo, arrasto os imãs da porta da geladeira até arremessá-los ao chão. Quando me amparo na porta, acabo com a pimenta magnética entre os dedos. Giro o dorso contra a janela e apoio seu ventre na máquina de lavar.
Grudado no suor da minha palma, o enfeite se transfere para suas costas, curvadas, quando agarro com força sua cintura.
“Venha”.
O gemido se interrompe e com a boca escancarada, os olhos fechados e o cenho franzido, a mão grudada em seus cabelos, minha respiração suspensa, tudo o que se ouvia eram as pancadas de seu joelho na superfície da máquina e o som da pele de meu ventre e das minhas pernas estalando no seu corpo.
E outras pancadas. Dessa vez rudes e impacientes.
Tente não ouvir, tente não ouvir.
Mas como o alarde não era respondido, uma voz rouca, nervosa, sobrepõe-se ao nosso movimento.
“Ei, eu sei que tem gente aí!”
Você esmorece, sua carne muda de temperatura, o frio já não se confunde com tesão e até o magnetismo da pimenta se vai. O bibelô salta de suas costas.
“Meu Deus”, murmura.
Tem certeza?
“Meu Deus”.
Pode ser engano. Calma.
“Meu Deus”.
O que eu vou fazer?
“Sei que tem gente aí. Abram!”.
Da cozinha, mesmo com a luz acesa, dá para ver o movimento pela fresta sob a porta de entrada.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

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17/8/06 00:36  

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