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Victor E. Folquening escreve, você lê e diz alguma coisa

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

Grupo de gestores para soluções estratégicas nas Faculdades Integradas do Brasil

quarta-feira, setembro 27, 2006

CINCO DOS MELHORES DISCOS DE JAZZ!




Eles não são de Coltrane, Miles, Ellington, Mingus ou Monk, mas não há razão
para negar-lhes status de grandes obras-primas do jazz.
Todas as
minguadas vezes que se materializam matérias sobre o gênero nas páginas
“culturais” dos jornais impressos, o clichê parece obrigatório: como os
jornalistas raramente entendem mais de jazz do que lêem nos verbetes dos guias ou releases
das gravadoras, a gente é obrigada a ler pela milionésima vez que “A Love
Supreme
dividiu águas” ou que “Kind of Blue botou Miles Davis no mapa da
música”.
Por isso fiquei com vontade de indicar cinco discos de jazz que
normalmente não entram na lista de favoritos dos críticos de música, mas são merecedores de lugar cativo no panteão das melhores gravações de todos os tempos,
bem ao lado de Milestones, Giant Steps, Brillant Corners, Mingus Ah-Um
ou Ellington Uptown.
Vou dizer com todas as letras: a seguir, cinco dos
melhores discos de todos os tempos.



LOVE REMAINS
Gravadora Red, 1986.
O disco é do saxofonista-alto Bobby Watson, que debutou em grupos exclusivos de sopro e apareceu na mídia ao integrar o Jazz Messengers de Art Blakey. Eu arrumei quase todos os discos de Watson e juro para você que nunca testemunhei uma gravação ruim do sujeito. A última, que ando ouvindo alucinadamente no carro, é um show do trio encabeçado pelo guitarrista Jimmy Bruno no clube Birdland. Watson é convidado e só não rouba a atenção porque Bruno é um bopper realmente impressionante. Mas os solos de saxofone... meu Deus, que coisa!
"Love Remains" é uma canção simpática, daquele tipo fácil de grudar no ouvido (especialmente a versão cantada, ainda mais por Kevin Mahogany). A interpretação que dá nome ao disco – que considero a masterpiece de Bobby Watson – é um triunfo da música popular. O crescendo deslumbrante, a intervenção cristalina do baixo (Curtis Lundy) e o acompanhamento primoroso de John Hicks ao piano (ambos, baixista e pianista, estrelas de outra obra-prima: Audience with Betty Carter), sem contar os ataques ora suaves, ora violentos de Marvin Smith no tarol e nos pratos... o altíssimo nível se mantém nas seis faixas, mas eu gostaria de ter uma emissora de rádio só para transmitir “Dark Days” ao mundo – é difícil você não se apaixonar pelo sax alto depois de ouvir as chaves do instrumentos estalando entre as notas do tema.

MUSIC FOR LARGE AND SMALL ENSEMBLES
Gravadora ECM, 1990.
O líder dessa sessão hipnótica é o trompetista Kenny Wheeler, uma das estrelas da ECM, gravadora européia que, entre outras coisas, popularizou Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos entre os ouvintes de jazz.
O título não é uma metáfora. Trata-se de uma partitura que exige, no início, um grupo de vinte músicos e, ao longo da peça, vai se moldando a septetos, quintetos, trios, duos e, finalmente, solos.
É um disco conceitual, mas a qualidade transgressora não se mostra na superfície. Ele pode até mesmo soar cool como aquelas gravações de Miles Davis com a orquestra de Gil Evans; um ouvinte desatento atribuirá uma certa aura “leve demais” aos primeiros movimentos. Mas espere! Todo o disco é um tecido meticulosamente tramado, e o fio que conduz a manufatura, até a metade da obra, precisa de peculiar concentração: é a voz de Norma Winstone, tratada como instrumento de sopro, um aparelho que soa algo entre flugelhorn e trompa.
Daí vem o tom hipnótico de que falei ali no início.
Talvez tenha a ver comigo, com algo bem particular. Durante anos ouvi um vinil riscado da orquestra de Gustav Bröm, da Basf, com capa imitando um vitral de igreja sobre fundo preto: Missa Jazz. Nunca achei versão em CD para curtir no carro ou em MP3, até que meu aluno, o Luís, detentor da tecnologia mutante dos softwares, transformou seu próprio exemplar do disco em arquivo digital. Ouvindo-o hoje, absorvo o calor dos graves, o tom colorido, mas meio enevoado, uma delicada passagem dos arcos para os metais... um mistério transportado em som, talvez por acaso, naquela gravação polonesa-alemã. Music for Large and Small Ensembles claramente não é um acidente. Wheeler capturou a atmosfera densa e sonhadora de outras experiências, mas costurou-a com música contemporânea e experimental.

LENOX AVENUE BREAKDOWN
Koch, 1979.
Quem não ouve jazz com freqüência naturalmente se choca com free. É como se aproximar de uma pintura de Jackson Pollock, pela primeira vez, sem nunca ter refletido sobre o sentido do realismo na arte. Assim como as pessoas dizem que “até meu sobrinho de três anos pinta essas manchas”, podem argumentar que os sons que saem do sax terminal de John Coltrane ou as notas marteladas de Cecil Taylor não passam de “urros, balidos, grunhidos e socos” ministrados por picaretas ou toxicômanos (não que a segunda hipótese seja totalmente desprovida de perspicácia).
Por isso eu não sei se o amor que sinto por esse disco do saxofonista Arthur Blythe contamina as pessoas a quem o indico. Eu tenho a impressão que 1979 é argumento fundamental contra aqueles que acreditam na obsolescência daquela década. 79 foi o ano de Audience with Betty Carter. Mais! Foi o ano de Lenox Avenue Breakdown.
Meu amigo Sílvio Fernandes sempre sacava os discos da Pablo e do produtor Creed Taylor para falar mal dos setentistas. Aquelas coletâneas com Zoot Sims e Toots Thielerman em Montreaux. Senhor! Era dose, mesmo.
Mas essa gravação de Blythe tem a coragem progressista dos jovens músicos de free jazz e um encanto latino inegável. Já nas primeiras notas da abertura, “Down San Diego Way” ouvimos o baixo agressivo, os pratos sibilantes e... cuícas! Apitos de escola de samba! Reco-reco! Você pensa: “não, por favor, nada de exotismo ianque com a minha cultura” e lembra do subversivo samba-enredo que deu o primeiro título à Beija-Flor de Lilópolis: “Sonhar com filharada dá o coelhinho/ com gente teimosa, na cabeça dá burrinho/ Chegou um rapaz todo enfeitado/ O resultado, pessoal, é pavão ou é veado”.
Mas não se trata disso. Não mesmo. É grande world music (apesar da chatice que é o rótulo) em que todas as nuances servem ao improviso. E o diálogo não é simplesmente entre culturas. É com o tempo. Como nas primitivas formações dixieland, temos um tubista ora marcando o passo, ora insinuando idéias. James Newton impõe a flauta no grupo como uma linha de falsa suavidade, contrapondo, como numa peça barroca, os improvisos violentos de Blythe.
Para citar o Sílvio novamente, jazz precisa ter swing. Às vezes é um tipo muito sofisticado de swing, quase inalcançável pelo corpo tenso do ouvinte. Mas aqui, não importam os gritos lancinantes dos instrumentos, sua circulação se adapta, o coração muda a batida e você dança.

MOTION
Verve, 1961.
Nunca fui um fã especial daqueles artistas que se agruparam aos pés de Lennie Tristano. Nem fui picado pela atmosfera de doce sofrimento cantada por alguns artistas de cool jazz, como Chet Baker – dele, quase me farto com as sessões do Gerry Mulligan’s Pianoless Quartet.
Adoro a música da Costa Oeste, mas prefiro o animadíssimo mainstream de Shelly Manne às gravações solo de Paul Desmond, cheias de lirismo classe-média.
Dito isso, uma contradição. Poucas obras são mais cool do que esse disco de Lee Konitz, talvez o mais Tristano de todos os Tristanos. Konitz ganhou admiradores pelo som bemolado de seu sax alto, algo entre melancólico e feminino, com notas espaçadas e construções incompletas. Bem mais que Stan Getz, que várias vezes se jogou em cascatas de notas, e muito mais cheio de progesterona que Lester Young, o pai da tonalidade erótica-depressiva entre os sopradores de paletas.
Numa famosa entrevista, Konitz, corado pela pele branquíssima e talvez alguns goles, respondeu com franqueza desconcertante porque não imitava Charlie Parker na época em que todos os saxofonistas estudavam horas a fio para se aproximar de Bird. “Alguns acham que eu descobri meu próprio estilo, mas eu não imitava Charlie Parker simplesmente porque eu não conseguia”.
Motion é, óbvio, um desmentido à exagerada humildade de Lee Konitz. Com uma qualidade que sempre gosto de ressaltar: é altamente técnico, um tour de force, mas pouca gente lembra disso depois de ouví-lo. Lembramos da música, tocada com fogo e sentimento, numa demonstração exemplar do trabalho em grupo no jazz. Trata-se de um trio, com o baixista Sonny Dallas e o impressionante Elvin Jones na bateria – o homem multi-rítmico dos discos mais célebres de John Coltrane.
Talvez seja a diversidade que produza tanta felicidade. São três músicos de temperamentos bem distintos e colocar Konitz e Elvin na mesma equipe é como articular o Juninho da época do Middlesbrow com o atacante Adriano da Internazionale nos seus respectivos melhores momentos. Tamanha integração foi vista, com tanta excelência, apenas um punhado de vezes: o lendário trio de Ahmad Jamal com Chuck Israels, o quinteto Clifford Brown-Max Roach, a parceria Bill Evans & Scott LaFaro & Paul Motian... Se a vocação do jazz é o diálogo secreto entre os comungantes da música, Motion é selo imprescindível da história da arte popular.

LIVE IN CHICAGO
Blue Note, 1999.
Kurt Elling é o grande cantor de jazz em atividade? Seria difícil dizer em qualquer situação, já que essa ânsia por pódio é quase uma praga entre jornalistas da arte e entretenimento. É doloroso particularmente porque como saberemos o que fazem, no momento, os vocalistas da nossa geração?
Mas é possível dizer, sem medo de errar, que poucos cantores têm obra tão regular. Eu ouvi uma gravação de Elling numa coletânea da Blue Note. Fui pego imediatamente! O ataque, a qualidade expressiva da interpretação, com uma sutileza e humor recônditos que pareciam ter desaparecido com Sinatra. E a voz aveludada, as notas distribuídas em falso desalinho, o tom deslumbrante nas baladas (como Johnny Hartman!).
Daí por diante fui procurando, detectando, ameaçando, seqüestrando... até que completei a coleção de Kurt Elling. E descobri que ele também é bom em escolher repertório, além de corajoso compositor e arranjador. Lembro de uma noite morna pelas ruas de Ponta Grossa, na recém-finalizada adolescência. Eu, Sílvio, Gelson Biscaia, Carlos Ikeda e Maycon Henneberg, amigos de infância, a bordo do Chevette marrom que foi o primeiro bólido do último na lista. Ouvíamos “A Love Supreme” com devoção quase religiosa. E refaço com perfeição o pensamento que me passou: “poderia haver uma versão com letra de Resolution”, a segunda e excitante parte daquela obra-prima de Coltrane.
Pois Kurt Elling gravou essa versão!
E nem é do disco que considero sua obra-prima, Live in Chicago.
Pense num disco com três grandes saxofonistas tenor – Von Freeman, Eddie Johson e Ed Peterson -, um quarteto acompanhante afiadíssimo e a colaboração de Jon Hendricks, grande scat-singing. E o repertório: “My Foolish Heart” melhor ainda que a versão Bill Evans-Tony Bennett, “Night Dreamer”, de Wayne Shorter, “Going to Chicago” e até “Smoke Gets in Your Eyes”.



O final, no entanto, é o que dá sentido à palavra “eletrizante”. Na tradição da música+poesia beatnick, herdada principalmente de Mark Murphy, Elling conta uma história “ilustrada” pelos saxofonistas convidados. O tom segue num crescendo emocional tão intenso que ao ouvirmos as notas graves marteladas ao piano e os sopros se ajustando ao uníssono, os arrepios tomam os braços e seguem direto ao estômago, como um soco.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Jornalismo na UniBrasil e curtas da pós em Documentários!

Desde que mudei meu endereço de blog, não postei mais comentários sobre filmes, espetáculos, música, livros, etc. e deixei fluir minha incompetência literária.
Mas hoje tenho duas novidades para compartilhar.
A primeira é que desde segunda-feira sou oficialmente o coordenador de Jornalismo da UniBrasil. Na semana passada já havia conversado com alguns representantes de turma e professores para me ambientar - confesso ter aprendido coisas para as quais suspeitava ser completamente incapaz (como usar o banheiro, comer com talheres ou falar a palavra cocrante...).
De qualquer modo, se você descobriu que não nasceu para a faculdade de Administração que está cursando ou que Pompoarismo ou Estudos Bíblicos ou Receitas Caseiras ou MBA em Senso Comum não foram escolhas adequadas ao seu perfil, se você está cansado de ouvir conversa pseudo-sensível sobre assuntos que certos ministrantes conhecem só pela televisão ... vá me visitar lá no campus da UniBrasil e eu tento provar que Jornalismo, assim como a Mona Lisa ou o Mickey Mouse ou o Coliseu, is the top.
Meu email lá é um clássico: jornalismo@unibrasil.com.br
bm,
A outra notícia é minha alegria com os primeiros trabalhos apresentados por meus alunos da pós em Direção de Documentários Cinematográficos nas Faculdades Curitiba.
Na condição de coordenador, mas sobretudo de professor de Linguagem Cinematográfica, não consegui esconder, no último sábado, minha satisfação com a postura profissional das sete equipes que entregaram mini-documentários biográficos inteiramente baseados em imagens fixas.
O professor José Nachreiner Júnior, "sócio" na empreitada e meu chefe no curso de Publicidade na Curitiba, é até mais efusivo - especialmente em relação a um dos trabalhos mais originais, "Tributo a $ebastiana", dirigido por Carol Coelho, Heidi Peters e Camilla Zani. O filme tem a qualidade de ter um tema complicado - o imposto e seu impacto na economia - adequado a uma linguagem puramente cinematográfica. Vale elogiar o título-trocadilho sugerido pelo Dary Júnior, aquele mesmo astro do rock-pinhão.
Dary (o Morrissey do Terminal Guadalupe), aliás, integra a equipe que produziu "Viver é Prejudicial à Saúde", um doc que registra a última entrevista de Jamil Snege, outro trabalho que lida com limitações desafiantes. Se "Tributo" precisava explicar, em cinco minutos, o desastre que é o atraso da Reforma Tributária, usando, para piorar, uma única personagem, "Viver..." precisou compensar um áudio incompreensível, guardado por anos em fita cassete. Da minha perspectiva, Rafael Trindade, James Alberti, Estevan Silveira, Marlene Silveira, Bruno Rack e o Herbert Vianna das Araucárias fizeram o possível e, por isso, sou grato pelo esforço.
Outra dificuldade, pra mim especialmente grave, foi tornar interessante mais uma pauta sobre velhinhos no asilo. Quando o Dudu Klisiewicz (o Humberto Gessinger da Gazeta) e a Josiane da Cruz (a Cindy Sherman do Rebouças) contaram do que se tratava o projeto, comecei a sofrer por antecipação: ainda mais que a Josiane, fotógrafa muito talentosa, tem aquela predileção suspeita por preto e branco. Mas "Cajema" foi muito bem realizado em vários aspectos, principalmente porque fugiu do sentimentalismo tão comum nesse tipo de tema.
No próximo post vou comentar os outros trabalhos (como hoje, sem nenhuma ordem de importância - apenas de "gancho"), que em breve estaremos oferecendo via net para os curiosos e cinéfilos.

segunda-feira, setembro 11, 2006

O AVATAR # 11! Leviandade, teu nome é Xana Aparecida!

Episódio de hoje: “Há algo de podre na 77a DP – parte 3”.


Ninguém teria acreditado, nos primeiros anos do século XXI, que aquela delegacia
estava sendo observada com atenção e bem de perto por inteligências mais agudas
que as dos próprios policiais e, no entanto, tão falíveis quanto eles. Os
homens, enquanto se ocupavam de seus diferentes problemas, eram examinados e
estudados, talvez tão minuciosamente quanto alguém com um microscópio pode
examinar as efêmeras criaturas que pululam e se multiplicam...


Ombro desligou o rádio. Estava cansado de notícias sensacionalistas sobre invasão de terroristas. Ele tinha um problema real para resolver: ajudar o fantasma de Peter Folk a descansar, desmontando a tramóia articulada na mesma delegacia em que jurou lealdade ao distintivo.
“Temos que entender qual é o papel do tenente Hernandez nessa farsa, Hélcio”.
Hélcio é o policial especializado em reconstituição de crimes. Atrás de seu frio profissionalismo há uma frustração latejante. Formou-se pela Escola Técnica de Artes Cênicas de Faxinal dos Papudos, mas nunca conseguiu emplacar como diretor de teatro. Desempregado aos 35 anos, foi forçado pelos pais a apelar para o concurso da polícia. Optou por carreira burocrática e o mais perto que chegou de seu sonho foi a recriação das cenas de roubo, assassinato, estupro, difamação e calúnia. “Estou farto desse realismo russo!” é seu bordão favorito no Cuspe do Saci, o boteco adotado pelos homens de farda.
“Como você vai saber, Rocky?”
“Não vai haver a reconstituição de um crime, hoje? De acordo com a reação que o tenente tiver, nós saberemos!”
“Não entendi!”
“Reescreverei o crime antes dos ensaios”.
“Mas se trata de um caso de assalto simples. Não entendo...”
Hélcio resolveu se calar. E daí? Era a oportunidade de testar uma linguagem mais... mais... teatral! Por que os crimes têm que ser reconstituídos de forma tão careta? E o que é realidade? Qual é o limite entre a arte e a vida? Será que os atores são bonitos?
Sim! Estava na hora de dar um passo a mais. As palmas para o arroz com feijão já não traziam emoção. Hélcio chegara a um grau de excelência tão alto na reconstituição convencional que alguns dos participantes acabavam presos por falsidade ideológica.
Os dois velhos conhecidos apertam as mãos. Ombro não deixa de fixar os olhos na tatuagem de lontra com capacete no pulso do criminalista. É sempre um selo de compromisso.
FF
Rocky Ombro leva Elizabete para o trabalho e pede que ela observe a reação de Lopez durante a encenação.
“Fique olhando e registre tudo. Depois você me conta. Tá bom, meu amor?”
“MIS”
“Sim, eu prometo. Se você trabalhar direitinho, te inscrevo no concurso de miss!” E deu um beijo na bolha, celebrando a mais bela equipe que ele conhece: pai e filha.
No local da encenação, Xana exibe seu sorriso cínico. O que ela faz aqui? Foi solta em troca de informações sobre terroristas. O AVATAR não se conforma.
“Mas o que ela têm a ver com isso?”
“Ótimas opiniões”, explica Hernandez. “Por exemplo: ela sugeriu que grampeássemos o telefone dos suspeitos. Não é genial? Seria uma lástima deixar fora da ativa uma policial tão preparada por causa de um pequeno deslize”.
Ombro se segurou. Esse “pequeno deslize” tirou a vida de seu segundo melhor amigo e, até então, o preferido entre todos os amigos vivos.
O cenário é a cantina de uma escola. O caixa faz seu próprio papel; os alunos que testemunharam o assalto se distribuem pelas mesas fixas de metal vermelho. O assaltante, algemado, ajudará Hélcio a dirigir. Participantes ausentes serão substituídos pela policial Xana e...
Geraldino Bocaiúva! Originalmente, o detetive desempregado faria o papel de uma das vítimas, mas quando foi visto pelo diretor Hélcio, ganhou o papel principal: o de bandido. “Minha experiência como investigador deve ter influenciado o pessoal”, disse, orgulhoso de seu “semblante de protagonista”.
“Como você aceita isso?”, sussurrou um inconformado Rocky Ombro.
“Eles dão o vale-transporte e dez pilas”, justificou o ex-Shaft de Romeniatown.
Hélcio levanta de sua cadeira de “diretor” e grita simulando impaciência: “Vamos começar, pessoal?” Pega o manuscrito preparado por Rocky Ombro, todo decorado com rubricas e marcações de caneta lumicolor, e chama os “atores”.
“Xana, você pega essa zarabatana e esconde sob a camiseta. Decore suas falas”. A policial deu de ombros. Iria ler, pois memória não era bem seu forte. Na semana passada, abençoou o espirro de um colega com a frase “Genésio te crie!”
Todos a postos, Rocky Ombro pisca para Elizabete, acomodada sobre o capô de uma das viaturas.

XANA – Precisamos dar um fim nesse detetive safado. Ele sabe do banco, meu amor!
GERALDINO (impostando a voz como se fosse uma criança) – Sim! Ele pode nos denunciar. O que faremos, agora que o plano de acusá-lo de assédio não funcionou?

Seguindo a rubrica de Hélcio, Xana tira a blusa e mostra os seios. Seu corpo treme como numa convulsão. Da mesma forma, Geraldino deita sobre uma mesa e uiva. Em seguida, levanta-se, vai até os figurantes da cantina, tira três pedaços de cartolina do bolso e pergunta para uma estudante:
“Você aí. É, você de blusa amarela. Não, não, a do lado. Tá, pode ser você. Ah, não quer mais. Então... você. Isso. Escolha uma cartolina. Não, nenhuma é azul. Essa cor é verde. Pode ser essa? Não? A outra? Tá!”
Bovaiúva volta para o centro da encenação e lê a ficha. Enquanto isso, imagens de pinheiros e punks pedindo esmola são projetadas pelas paredes.
“O jogo é FILMES! Você aí trepada no carro, escolha um de nós para jogar”.
Elizabete Ombro escreve na bolha, mas...
“Sinto muito, nenhum de nós se chama ÊCOV. Acho que você quis dizer Xana, né? Xana, venha aqui!”
“Parem. Está tudo errado!”
Ombro colocou-se em alerta. Quem gritava era o assaltante verdadeiro, Alberto Macedinho, conhecido como “O Albino” nas docas de Romeniatown.
“Quem escreveu isso? Tá tudo errado. Pra começar, precisa escolher um tema antes de decidir o jogo. Por exemplo: o tema é pedofilia. Aí o jogo é FILMES, para aproveitar a colaboração do colega. Caso contrário, não tem sentido nem graça”.
Todos esmoreceram a olhos vistos.
“Meu Deus”, continuou O Albino. “Será que é tão difícil respeitar a linguagem teatral?”
“Parem com essa palhaçada!”, gritou Hernandez Lopes. O tenente levantou da poltrona improvisada, segurando uma lata de cerveja, e saiu transtornado em direção de sua viatura. “Chega de perder meu tempo”.
Rocky Ombro encarou Hélcio e olhou para o céu. As nuvens voltavam a formar o sargento Lucius Strinksmeyerson. Um avião cruza o rosto enevoado e temos a impressão que o mentor espiritual de Ombro pisca para a Terra. Tudo está claro agora. O tentente Hernandez Lopez está por trás da trama que deu cabo em Peter Folk. A reação intempestiva durante a reconstituição não deixa dúvidas.
O AVATAR entra na ex-ambulância e dá a partida. Tem a prisão mais difícil de sua vida para fazer.
Em poucos segundos, alcança a viatura de Lopez que, embriagado, dirige a menos de 40 km por hora. Nas calçadas, uma multidão se acotovela para observar a pequena fila formada pelo carro encimado por uma bolha, de onde acena uma garotinha, seguido por uma ambulância mal disfarçada.
O pequeno Juvenal puxa a saia da distraída dona Selena: “Mãe, um desfile!”

No próximo episódio: Lopez alega não entender onde Ombro quer chegar. Para garantir que o suspeito seja reconhecido, O AVATAR escreve um “M” com giz nas suas costas. Hélcio recebe convite para trabalhar no Linha Direta. Geraldino Bocaiúva é demitido porque usou o banheiro sem autorização escrita. Seigla reaparece no apartamento de Sindy com hematomas num lugar “especial”. Não perca: “Um episódio truncado”.

MACACOS ME MORDAM! Peça teatral em quatro cenas desproporcionais

CENA UM

Sob a porta de um caminhão, JOANA, entre 45 e 50 anos, cabelo pintado de vermelho e óculos espelhado, conversa com o motorista Ela usa uma camiseta onde se lê PAI ETERNO, FILHO GALILEU, com um desenho imitando a capa do livro de auto-ajuda. É professora. Ela fala com VALMIR, entre 40 e 50, tipicamente barrigudo, mas com um certo charme malandro. Ela se movimenta com ar preocupado. Não quer que a vejam “negociando” com Valmir.

JOANA: Minha vizinha disse que o senhor sempre vê por lá...

VALMIR: É, dona, eles tão sempre em umas gaiolinha à beira da estrada.

JOANA: Mas e a fiscalização, o Ibama?

VALMIR: Olha, dona, praqueles buraco do Mato Grosso não tem nem luz, vai ter fiscalização?

JOANA: Então o senhor traz pra mim? É uma surpresa pros meus filhos...

VALMIR: É o que eu disse, dona. Nunca trouxe. Eu sei que tem, porque uma vez por mês eu passo lá e os macaquinho tão abraçadinho nas grade da gaiola esperando, bem mansinho... mas se tiver por lá quando eu passar, na volta eu trago.

Joana sorri, ansiosa, e tira duas notas de 50 e dá para Valmir.

CENA DOIS

Gaiolas com micos de olhos injetados, com a língua entre os dentes, balançando vagarosamente como se estivessem escutando reggae. Dois camaradas de camisa encardida aberta até a barriga estão sentados sob uma árvore. BUDÚ, um rapaz de trinta e poucos, tem uma GARRAFA DE PINGA na mão. Ouvimos o som do caminhão. Um deles, JAIR, mais velho que o outro, levanta e anda na direção da carreta.

VALMIR: Tarde...

Jair responde com aceno de cabeça

VALMIR: São mansinho?

JAIR: Pra criança, é bicho pra fazer companhia pra criança. Olha só o marditinho...

Um mico olha, de um jeito vazio, e balança a cabeça vagarosamente, com a língua pra fora, entre os dentes. Jair tira o mico da gaiola e leva até Valmir, que se encanta com a doçura do animal e pega, meio desajeitado, no colo.
O CAMINHÃO SAI E JAIR BOTA UMA NOTA DE 50 NO BOLSO. Logo depois da partida, aparece um outro GAROTO, com um mico dentro de um SACO amarrado. O menino tem dificuldade de controlar o pacote, pois o animal esperneia e grita. Jair vai acudir e segura o macaco ensandecido no chão.

JAIR: Budú, traga a pinga!

CENA TRÊS

Valmir dirige, ouvindo música romântica meio indefinida. Cantarola resmungando. De vez em quando estica o braço direito e acaricia a cabeça do mico, que está sentado no banco do passageiro. Eventualmente sorri para o bicho.

VALMIR: Tá quente, né, Cleverson?

De repente, o mico começa a agitar a cabeça mais rapidamente e o olhar perdido vai se transformando em desconfiado. O porre de pinga está passando. Valmir está com as duas mãos no volante. Então ele troca de marcha e, olhando pela sua janela, leva o braço em direção do macaco... e leva uma mordida! O bicho começa a gritar, morder, pular, arranhar... Surpreso, Valmir passa a fazer ziguezague na pista. O miquinho morde a mão do motorista, que grita desesperado!

VALMIR: Solta, Cleverson, solta!

O motorista agita a mão direita de um lado para outro tentando fazer o animal se soltar. Num movimento para a esquerda, arremessa o macaco para fora do caminhão. Da cabine, Valmir olha assustado para fora, ouvimos um baque num vidro de carro, uma freiada, um barulho de capotamento e, finalmente, uma explosão! A luz do fogo inunda a cabine e os olhos arregalados do caminhoneiro.

CENA QUATRO

É uma sala de jantar e tem um sofá de costas para a porta. Ela, usando uma camiseta com gráficos onde se lê INVESTI NA BOLSA DE JESUS; leva uma travessa com macarrão colorido para a mesa. Usa um AVENTAL onde se lê SÁBADO. Na mesa, estão os GÊMEOS. Eles têm 15 anos!

JOANA: Everson, eu esqueci a banana à milanesa, vai buscar pra mim?

EVERSON: Porque você nunca pede pro Cleverson, mãe?

JOANA: Vocês parem de brigar... daqui a pouco um amigo da mamãe vai ligar e eu vou buscar um presente muito especial... mas é pros dois. Os dois têm que prometer que vão cuidar com carinho... não quero ver vocês se matando por causa do presente.

Os gêmeos estão claramente desinteressados. O TELEFONE toca. Cleverson, perto do aparelho, estica o braço e atende.

CLEVERSON: Alô... é o Cleverson... alô... ei...

JOANA: Quem é, Cleverson?

CLEVERSON: Não sei, ficou quieto depois que eu disse que era eu...

JOANA: Deve ter sido engano.

CLEVERSON volta para a mesa. EVERSON come vorazmente.

JOANA: Pare, Everson, pare. Vamos orar.

De mãos dadas, olhos fechados, a família dá as mãos.

JOANA: Senhor!...

O telefone TOCA novamente...

JOANA (Levantando-se): Mas que diabo de telefone! Alô...

VALMIR (fora de cena): Ele tá aí?

JOANA: Quem? Quem tá falando?

VALMIR: É o Valmir... ele tá aí?

JOANA: Ele quem?

VALMIR: Cleverson.

JOANA: Tá, sim... você vai fazer uma surpresa para os meninos?

VALMIR (f.c.): Ele... ele perguntou de mim?

JOANA: Não...nem ele nem o outro, eles não sabem que você vem aqui.

VALMIR (f.c.): Tem outro?

JOANA: Ah, não sabia? São dois.

LUZ COLOCA VALMIR EM CENA. CHOVE SOBRE O TELEFONE PÚBLICO.

VALMIR: Onde eles estão, agora?

JOANA: Estão na mesa, para almoçar. Você pegou a gente no meio da oração... Espera um pouco: Cleverson, pegue você as bananas, então! Venha logo, Valmir, que eu preciso inscrever os dois nos Estudos Bíblicos hoje à tarde... sabe, eu fiquei preocupada. Eles vieram com uma conversa de Evolucionismo... Deus me perdoe...

VALMIR (assustadíssimo): A senhora acha que devo ir aí hoje?

JOANA: Claro! Eles são muito espertos... se você não vir hoje, eles vão descobrir e você nunca mais vai ter sossego.

VALMIR: Eu vou passar aí, então... mas peça desculpas por mim, por favor...

JOANA: Ora, não seja bobo, tá no prazo ainda. Tchau.

JOANA volta à mesa e termina a oração, balbuciando.

TODOS: Amém!

A CAMPAINHA TOCA

JOANA: Mas que diabo!

EVERSON: Eu atendo...

CLEVERSON: Vou ao banheiro...

CLEVERSON SAI DE CENA. VALMIR está na porta. Está encharcado, cabelo desgrenhado, cara de espanto.

JOANA: Ei, Valmir, que rápido!

VALMIR: Eu liguei do telefone aí da frente.

JOANA: Entre.

VALMIR: Onde está Cleverson?

JOANA (com ar ressabiado): Está no banheiro... você está meio obcecado pelo Cleverson... Cadê o presente?

VALMIR: Presente?

JOANA: É, vamos buscar? Cleverson, vamos buscar uma surpresa para vocês...

CLEVERSON (f.c.): Já vou, tô cagando!

JOANA (encabulada): Glória a Jesus, que vergonha! Desculpe...

EVERSON (Rindo com a boca cheia de macarrão):
Daqui a pouco ele vai cagar na mão e jogar em você...

A CAMPAINHA TOCA.

JOANA: Nossa, isso tá agitado, hoje. Senta no sofá, Seu Valmir.

Valmir senta, olhando para o lado que Cleverson saiu. Joana abre a porta, cobrindo o espaço e grita. Cai desmaiada. Vemos o MACACO, ofegante, cheio de sangue e hematomas, com uma FACA na mão. Raios e trovões atrás dele.

FIM

domingo, setembro 10, 2006

ALGO OU ALGUÉM # 2! Cavalo na madrugada

A história a seguir eu escrevi há muitos anos, quando ainda morava em Ponta
Grossa - a cidade mais assombrada do mundo. Mudei pouca coisa nela para essa
versão e é possível que irrite os leitores por causa da técnica precaríssima.
Por algum motivo, no entanto, eu considero um bom argumento para curta-metragem. Como a anterior, é um caso real.



ff
Cavalo na madrugada

O prédio é alto o suficiente para avistar todos os outros. São muitos, de vários tamanhos, mas de textura quase uniforme, ainda mais de madrugada. Dá mesmo para ver todos, pois mesmo os pequenos que ficam atrás dos maiores deixam-se insinuar entre uma fresta e outra; até os mais discretos se mostram através dos reflexos provocados pelos pastilhamentos, pelos vidros, pelos alumínios que adornam as fachadas.
Enxergo tudo de norte a sul, já que temos janelas para os dois lados. Leste e oeste parecem dominados pelo campo, de uma perspectiva, e pelo mero prolongamento dos prédios visíveis, pela outra. Estamos no alto de uma cidade considerada “de médio porte”. Mas não há o esplendor da altura. A torre não é imponente, é mesmo provinciana, um tanto anônima na comunidade dos edifícios da cidade, incentivando-nos, deste ponto de vista, a aceitar a indistinta comunhão do concreto.
A noite morna de horizonte imóvel contribui para a sensação. É tudo parte de um organismo só, em cujas veias as pessoas dormem ou talvez circulam tão fugaz e rapidamente que sequer as enxergamos. Não há ninguém lá ou ali ou lá daquele lado. Podemos até ouvir os estalidos dos semáforos mais próximos, trocando o vermelho pelo verde, o verde pelo laranja, banhando o asfalto escuro de uma solitária cintilação de discoteca.
Afasto-me de esguelha, sentindo as costas vibrando pelo cansaço; sustento um pescoço rijo e febril. Deixo a janela o suficiente para perder seu leve latejar, mas ainda tenho em conta o púrpura do céu. Quero me apropriar do silêncio da madrugada, isolando o barulho eventual de motores, apitos ou do vento.
Os sons se dissipam por alguns instantes. Estou na cama, cercado de três ou quatro travesseiros, sobre uma colcha azul, com os olhos fixos no tremeluzir do relógio instalado no aparelho de som.
Ouço então um galope. Regular e ritmado, dono de uma massa sonora quase colorida. É tão tão hiper-realista, um verdadeiro estereótipo do som de um galope. Dou um salto e volto à janela. Olho ansioso para todas as ruas que se desenham sob meu parapeito. Repito o rastreamento, metodica e pacientemente, percorrendo superfície por superfície entre as colunas dos prédios. Apenas o som da tropeada, ora mais vivo, ora mais distante.
Corro até a janela oposta, no quarto vazio depois do corredor. Busco as sombras entre as casas, estico meu corpo e aperto as pálpebras para tentar ver a fresta no edifício cinza. Nada. Concentrando-me no som dos cascos, deixo-me levar de novo para o outro lado do apartamento. À direita da janela, um vulto esguio acompanha o galope. Corro de uma extremidade a outra tentando ver o animal, hipnotizado pelo repique dos ungulados no asfalto. O cavalo parece circundar o prédio.
O intervalo entre os passos aumenta. Poderia até contar as quatro pernas se alternando na rua, simulando uma espécie de balé; o silêncio interrompido por crepitações demarcadas, irregulares a esta altura.
À medida que o trote se avoluma, o coração espanca. Minha atenção minuciosa faz acreditar que os passos se sucedem uns ao lado dos outros; o animal dá pequenos saltos laterais, ou volta de costas, em disparadas mais rápidas, interrompidas abruptamente.
De repente, o galope volta à forma original, suntuoso e regular. Estou com a face colada ao vidro. O som dos cascos passa a ecoar e vibrar pela estrutura interna do meu prédio. Parece que ele entrou. Sinto-o atravessando o saguão, uma dezena de andares abaixo. O tropel, estalido reverberado pelas paredes, se expande até me atordoar.

Saio do quarto e tomo o corredor em direção à sala principal. Paro alguns segundos para ver minha palidez refletida na fotografia emoldurada. Sigo até a entrada do apartamento. À esquerda, enviesado no meio do tapete, um cavalo de olhos escuros e opacos, de pelagem avermelhada, olha imóvel para o canto de onde saio.

INSPETOR JESUS # 1! Proposta para seriado policial

Episódio-piloto: "É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um bandido escapar do Inspetor Jesus".


Ninguém sabe ao certo o passado do Inspetor Jesus nem quem é a mulher misteriosa
que sempre liga quando Ele está investigando a cena do crime. O intrigante Jesus
é um homem de muitos segredos. Mesmo assim, encanta a todos com Sua afiada
inteligência e o talento milagroso para resolver crimes quase insolúveis. "É o
único Cara capaz de ressuscitar um camarada só para perguntar onde o morto
estava quando foi assassinado", admira-se o investigador Thiago.

O corpo boiava com todas as extremidades alinhadas na superfície. A única farpa que destoava era o rasgo fatal no meio do peito e a estrela de sangue desenhada no uniforme cáqui. É preciso admitir que a cena toda era linda, a começar pelo sepulcro provisório escolhido pelo assassino: a grande barreira de corais australiana. Para completar, o protagonista do mistério era tão célebre quanto os ornitorrincos, coalas ou didjeridoos escondidos na arca alguns séculos antes.
"Tudo leva a crer que foi uma arraia", explica aos solavancos o detetive Saulo, desacostumado ao intempestivo oceano Pacífico.
“Não sei não”, duvida o detetive Tomé, segurando firme na proa. “O que não entra na minha cabeça é: porque uma arraia mataria Steve Irwin? Quer dizer, o cara já arrumou encrenca com cobras, crocodilos, aranhas... logo uma arraia! Isso não me cheira bem!”
A conversa é interrompida pela imagem torpe percebida simultaneamente. No horizonte, uma mancha esquálida aos poucos toma forma, como uma miragem. Em poucos segundos, conseguem definí-Lo andando sob a água na direção ao belo e mortal cenário.
“É ele!”, grita Saulo.
“Omar Shariff!”, arrisca Tomé.
Não, não era. Era o Filho do Homem, como ficou conhecido na academia, quando os outros cadetes injustamente acusavam-No de ser favorecido pelo parentesco com “gente da alta”.
“Inspetor Jesus!”, alegram-se os dois – ambos legítimos discípulos dos métodos investigativos do mais internacional dos policiais.
“Eeei, rapaziada, qual é a do cadáver?”
“Um exame preliminar diz que foi briga feia com uma arraia, Senhor”, começou a reportar Saulo. “Ela ferrou o cara”.
“Hmm, isso dá para ver claramente”, diz Jesus, de cócoras na água para enxergar melhor a chaga mortal. “Não”.
“Não?! Como não?!”, se espantaram os jovens policiais, olhando um para o outro e depois para Jesus e depois para o morto.
“Estão vendo esse serrilhado aqui perto da ferida? Então...”
O duo Signor, Ecco La Rea, de O Coroamento de Poppea, rompe a explicação. É o ringtone do celular de Jesus.
“Alô. Eu disse para não ligar quando estou trabalhando!”
Como vou saber o que está fazendo? Faz três dias que Você tá sumido, sem dar notícia. Já liguei para hospital, polícia e até procurei nas cavernas de Cafernaum para ver se Te achava...”
“Mas...”
“E não é a primeira vez que Você some por três dias. Depois reaparece, sorridente e cheio de marcas pelas mãos, pelos pés, na costela...”
“Não chore...”
“Venha para casa, é Páscoa! Jesus, é sério, esse Seu trabalho vai acabar contigo. Isso não é vida!”
Irritado – mas solidário –, o Inspetor Jesus despediu-se secamente e desligou antes que ela perguntasse onde Ele estava. Imagine o chilique.
“Onde Eu estava? Ah, em verdade vos digo: não foi uma arraia que matou Steve Irwin”.
“O Senhor já disse isso”, retrucou o ansioso Tomé.
“Ah, desculpe. É a linguagem bíblica, sabe? Bem, Irwin não foi mortalmente ferido por uma arraia. Foi um crocodilo!”
“!”
“Sim, mas não um crocodilo comum. Em verdade, em verdade vos digo: foi um crocodilo vestido de arraia!”
Nesse momento, o bote chacoalha dando um banho nos discípulos do inspetor Jesus. Sob o casco havia um zíper. Mãos verdes com unhas grossas e sujas abrem o barco – que se revelou, enfim, um disfarce. Mais um do enorme arsenal do... Mister Crocodilo!
“Muito esperto, Jesus, como sempre” – o assassino portava um mosquete genuíno carregado com enxofre. “Mas dessa vez não será tão fácil. Fiquei muito mais ágil desde o disfarce de cobra no deserto. Prepare-se para rezar!”
“Ah, você acha Jesus esperto?”, devolveu Jesus. “E pensa que deu cabo no pobre Steve Irwin. Pois tenho uma surpresa para você. Há alguém aqui nesse oceano bem mais esperto que Jesus. E não é você”.
E aquele que pensávamos ser Jesus abriu um zíper maquiado como cicatriz de chicotada, nas costas, e revelou o mais famoso sedutor de répteis no mundo: Steve Irwin!
“Mas... como? Quem é o cara que matei com um ferrão de arraia?”
“Aquele é um médio volante da seleção sueca de futebol. Quem ri por último, agora, Dr. Crocodilo?”
Catampum!
Dr. Crocodilo acerta Steve Irwin bem no meio do peito, dando fim à audácia do apresentador de televisão para sempre.
“Rá rá rá rá rá rá!” ecoou pelo Pacífico.
“Não tão rápido, Doutor Crocodilo!” Era Saulo. Ou melhor, Jesus, que até ali fingia ser Saulo. Com sua vara de bambu, Jesus tirou o mosquete das garras do enorme réptil mau. “Ordeno que volte para as profundezas!” (comando que revelou pouca intimidade do Filho do Criador com zoologia ou ironia impenetrável ou parte de uma parábola convenientemente aberta a milhões de interpretações).
“Shit!”, praguejou o assassino, que se transformou num boto e sumiu num redemoinho de pó.
“E quanto a você, Tomé, revele sua verdadeira identidade!”
O nariz caucasiano de Tomé, que flutuava inteiro ali perto, desmanchou como cera e em seu lugar apareceu um focinho de porco que sustentava aros redondos para olhos cândidos e provocadores.
“Ordeno que me diga seu nome!”, repetiu o bíblico Jesus.
“Legião, porque somos muitos”, falou Tomé, agora com uma voz que parecia um disco do Sepultura rodado ao contrário (o que é exatamente igual ao rodado na direção certa).
Como Jesus desconfiava. O criminoso era um velho conhecido, especialista num campo diferente de maldade.
“Revele sua face, Renato Russo!”
E a metamorfose se concluiu, com direito a estampa de Joy Divison na camiseta.
O inspetor Jesus já havia pedido a prisão preventiva de Russo por vários crimes e sua fé no sistema judiciário caiu completamente quando o vocalista foi solto sob fiança mesmo depois de ter gravado Metal contra as Nuvens. “Por que me abandonaste?”, chegou a gritar para o alto um desesperançado Inspetor.
“O Senhor não me engana, Jesus”, vociferou Renato Russo.
“Você está bêbado, se acalme”.
“Bêbado? Quem estava bêbado naquela festa em Canaã, Quem?”
“O que tem aquela festa?”
“Não se faça de Lázaro sem Braço pra cima de mim. Até o Senhor foi adolescente um dia e a Tua cara caiu por pura vaidade. Me explique o lance dos peixes! Do vinho!”
“Não sei do que você está falando”.
“De repente, o Senhor fez um peixe virar uns cem peixes!”
“Pelo jeito você é que estava bem bêbado naquela festa”.
“Ouça o que eu estou te dizendo, Galileu filho de uma virgem...”
“Olha como fala de minha mãe! Eu já agüentei demais!”
“Não importa quanto tempo demore, eu vou Te desmascarar. Tua hora vai chegar!”
Cansado de tanto blablablá, Jesus pegou Sua vara de bambu e expulsou Russo da grande barreira de corais australiana.
Serviço concluído, tirou Seu celular no bolso de trás dos trapos da cintura e fez a última ligação do domingo.
“Mãe, prepare aquele pão ázimo que só você sabe fazer. Eu estou voltando!”

No próximo capítulo: o ex-atacante de futebol Christo Stoichkov e o artista plástico Christo ajudam Jesus a prender um ladrão internacional de jóias na Bulgária. Não perca: “Um ladrão entre dois Christos”.

Comentários da crítica depois do último episódio da primeira temporada:
“Eu achei muito ousado matar logo o protagonista nas últimas cenas. Mas o seriado foi um sucesso e as redes de TV não perdem a oportunidade de lucrar no ano seguinte. Aposto com quem quiser que Jesus ressuscita na próxima temporada”. Mathias Salame – WKO R News and Used.

“Algumas pontas soltas, como a história envolvendo Maria Madalena e o mistério sobre a infância do Inspetor, são indicativos certos de uma continuação. Mas a esse custo por episódio, desconfio que Jesus volta só daqui a mil anos”. Christopher Berinjelus – Imbituva Reporter.