BOP!

Victor E. Folquening escreve, você lê e diz alguma coisa

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

Grupo de gestores para soluções estratégicas nas Faculdades Integradas do Brasil

segunda-feira, julho 24, 2006

THE LADY IS ABSTRACTED! Completo

Parte 1
A atriz da minha peça precisa grudar na parede.
Depois de discutir bastante sobre os caminhos da preparação, elaborar em detalhes apoios que poderão ou não ser anexados ao cenário e ouvir especialistas de várias áreas, como a Suely Machado,professora de expressão corporal do ACT, fiquei convicto de que o primeiro passo é Tai Chi Chuan.
Na verdade, eu tinha decidido a respeito antes de ouvir qualquer um, inclusive a atriz. Acho que fiquei seduzido por outra oportunidade de misturar linguagens no processo para a encenação.
Bem-vinda receptividade confirmou a intuição. Todos se reuniram, se enlaçaram ombro a ombro, e disseram em coro:
“Boa idéia, Tai Chi Chuan é uma ótima maneira de desenvolver o equilíbrio físico e mental necessários para o difícil desafio”.
Depois aplaudiram e se abraçaram com fortes tapas nas costas.
A Priscilla passou, então, a ter aulas diárias de Tai Chi Chuan com um japonês chamado Frank.
Confesso que adoraria praticar a arte marcial – talvez seja idéia romântica: não me livro do modelo Daniel Sam & Mestre Miaggi sob os troncos do trapiche, no final da tarde, erguendo lentamente as pernas e abrindo os braços como um albatroz... Também devo admitir que adoro o seriado Kung Fu, com o David Carradine, e sempre que preciso tomar uma decisão importante como em quem votar, se apóio ou não determinado aborto ou se acredito em cremes dentais com sabores divertidos, eu penso:
“O que o Pequeno Gafanhoto faria?”
Mas, como eu imaginava, é um treco difícil, dolorido e que exige obstinada disciplina. Frank, por exemplo, esteve prestes a fazer votos monásticos e, mesmo fora do templo, acorda todo dia às 5h30 para meditar e praticar Tai Chi Chuan. Portanto eu fico feliz em “treinar” ouvindo a Priscilla, toda dolorida e praticamente desmaiada, contar os exercícios ainda elementares.
O primeiro deles é o movimento chamado “Cavalo”, que consiste em abrir as pernas, flexionando-as em 90 graus, e sustentar o equilíbrio com a planta dos pés. Parece simples, mas tente fazer isso por cinco minutos. É impossível para alguém que, como eu, tem a elasticidade de uma barra de cereal.
A prova do funcionamento da coisa é que o próprio Frank, quando prestou o exame para se tornar professor da Federação Brasileira, precisou ficar uma hora nessa posição, observado de perto por outro japonês, bem mais velho, barbudo e intolerante.
“Imagine o que aconteceria comigo? Eu nunca mais sairia do lugar. Teria que trocar os bancos do carro por selas”, eu previ, enquanto dirigia para o curso, ontem à tarde.
Aí veio a conversa sobre começar aos poucos, respeitar os limites do corpo, blá, blá, blá, e eu caí, como sempre, naquele papo auto-depreciativo que parece implorar expressões de conforto, como se estivesse na fila para ser atendido por um médium. Do alto de sua invulgar flexibilidade e preparo corporal, ela saiu com essa:
“Veja, todo mundo tem seus pontos fracos. Você é desajeitado, eu sou distraída”.
Temos aí uma verdade indiscutível. Priscilla é o tipo da pessoa que você já espera que não preste atenção. Para provar, incluímos frases sem sentido no meio da conversa:
“Então o sargento Howie vê que Rowan realmente estava viva e que Cristo e os apóstolos estavam por trás do Homem de Palha”.
“Tá”.
Mas nada se compara com as histórias que ela me contou durante o caminho.

Parte 2

Poucas coisas são mais aflitivas do que perder a deixa para entrar no palco. Isso piora quando se trata de musical com dezenas de atores. E você precisa aparecer cantando!
Pois a Priscilla aguardava a deixa na coxia durante apresentação de Babes in Arms, num teatro de Greeley, cidade do Colorado, tagarelando com a amiga Brigette, que também deveria entrar em cena.
O coro já entoava a famosa letra de Lorenz Hart:

She gets too hungry, for dinner at eight
She loves the theater, but doesn't come late
She'd never bother, with people she'd hate…

“Perdemos a deixa!” Entraram em pânico. Brigette estava decidida a não entrar, mas nossa atriz deu um salto em direção ao palco, puxando a colega pela mão.
That's why the lady is a tramp...
Obstinada, foi abrindo caminho entre os outros atores até chegar à marcação, logo no proscênio! Não percebeu, entretanto, que a manga de Brigitte havia enroscado na maçaneta da porta que levava ao palco. Ao seu lado, toda desengonçada, a amiga dançava com um dos braços nu.
Won't dish the dirt, with the rest of those broads...
Priscilla passou a procurar a manga pelo palco, "disfarçadamente". Com o canto dos olhos, viu o pano pendurado na porta lateral. Aproveitando um movimento da coreografia, sumiu da vista da platéia. Segundos depois, apareceu com o trapo mal camuflado entre as mãos. "Pegue, Brigette!"
Não poderia ter esperado até que todos saíssem do palco? "Me distraí..."
“Isso não foi nada”, ela me disse, “o que eu devo mesmo evitar são competições em que preciso cumprir percursos”.
Estava cada vez mais intrigante!
“A situação mais constrangedora da minha vida aconteceu durante um campeonato estadual de natação entre escolas”.
Nervosa e consciente de sua implacável distração, temia perder o sinal. "Swimmers, take your marks". Como sempre, antes do "go", alguém queimou a largada na primeira raia e todas voltaram para a marca inicial. Mas a concentrada nadadora não ouviu e continuou nadando. O juiz gritava para que parasse, o treinador acenava e começaram a chamá-la pelo alto falante do ginásio. Ela foi até um lado, deu a volta, e manteve as braçadas. O público gargalhava e os outros competidores ficavam pulando no mesmo lugar, impacientes.
Quando a odisséia acabou, percebeu a gafe e, roxa de vergonha, tentou sair da piscina. Mas era muito funda e a distância entre a água e a borda, muito alta. Exausta por ter nadado com tanta determinação e tensa com o aplauso piedoso de 20 mil pessoas, não conseguia impulso para alcançar o piso superior.
Os outros tentavam ajudar e Priscilla escorregava pelos ladrilhos.
“Eu sempre me perco”, completou desacorçoada, “Quando vou correr de kart, continuo dando voltas depois que a corrida acaba”.
Tive uma idéia!
“Vou escrever um monólogo para você com essa história!”


Parte 3

“Não mesmo!”
“Como assim?”
“Já notou que sempre me descreve de um jeito que pareço burra, distraída ou ingênua?”
“Ei, ei...”
“No seu blog, sou a personagem que não entende o que você está falando e pergunta: como assim?”
Mas o monólogo vai me redimir dessa impressão, eu disse.
“Chega de ser escada para suas piadas”.
Eu já não estava ouvindo direito. Se ela dissesse que Jesus e os apóstolos queimaram o
Sargento Howie no Homem de Palha, aceitaria com um aceno de cabeça.
“Eu juro que nunca mais vou tratá-la como boba ou distraída numa história”.
Depois de alguns minutos mergulhada numa conversa que já me escapa, lembrou que eu exagerei na anedota do Babes in Arms. “Você disse que eu tentei colocar a manga de volta na camisa da menina! Só um idiota faria isso. E aquelas frases estúpidas? Pareço um desenho animado”. Argumentei que se a história acabasse com a Brigette atuando com o braço pelado, como realmente aconteceu, ficaria banal demais.
De qualquer modo, prometi que não mencionaria mais o episódio.
“Veja, você pode fazer o monólogo naquela linha de Canção do Suicídio”.
Quero investigar as possibilidades de interpretação em histórias “contadas” pelo ator, testar o aprimoramento de narrativas curtas durante o processo: substituir falas por gestos de intenção, estes por projeção da voz, trocada por marcação e assim até que corpo, som, espaço e texto se completem de forma mimética - busca óbvia do teatro, mas aplicada especificamente à tradição oral.
“Eu já disse que não sou engraçada”.
O climax será o momento em que Priscilla tenta sair da piscina. “Precisa assumir esse ar blasé e protestar como se estivesse com sono. Descreva o ambiente conturbado, as pessoas rindo de ti e aplaudindo, os professores de cócoras à beira da piscina. Nisso dê umas barrigadas no ar e diga: ‘Eu parecia uma foca amestrada, só faltava jogarem uma sardinha’. Em seguida imite uma foca batendo palmas em agradecimento”.
Ela ficou um silêncio alguns segundos, olhando para mim com a boca aberta.
“Você está louco! Eu não vou me submeter a isso”.
Ataquei até com o papo do ator santo do Grotowski, lembrei que o Roberto Innocente nos disse, durante oficina, que o grande ator usa o ridículo como trunfo e cheguei mesmo a fazer uma careta e imitar o Cosmo de Donald O’Connor:
Make 'em laugh
Make 'em laugh
Don't you know everyone wants to laugh?
My dad say: "be an actor, my son
But be a comical one
They'll be standing in lines
For those old honky tonk monkeyshines"

“Mas a piada não tem graça. Vai ser constrangedor”. Não, não, eu retrucava, será um grande desafio na arte de usar o corpo.
Nisso, chegamos em frente à escola ao mesmo tempo que Frank se aproximava da porta. Acenou e ficou esperando.
“Já sei”, eu disse, saindo do carro, “vou pedir para o professor de Tai Chi Chuan te ensinar a Posição da Foca”.
“O quê?!” E saiu apressada atrás de mim. “Isso é ridículo, não existe Posição da Foca”.
Eu estava decidido. “Deve ter alguma parecida. Tem Foca na China? Posição do Coala, quem sabe...”
“Victor, pare, não me faça passar vergonha. Você não vai pedir isso para ele!”
Mas já tínhamos chegado ao Frank, que nos cumprimentou com o punho direito acomodado na mão esquerda, na altura do peito. Priscilla sorriu para o professor e sussurrou brava no meu ouvido:
“Me empreste a chave do carro, vou dar uma volta na quadra enquanto isso”.
“Frank, parabéns pelo seu trabalho”.
Como bom japonês sábio de filme americano, ele franziu o cenho e respondeu com um aceno rápido de cabeça.
“Me diga, você pode treinar a Priscilla numa posição de foca?”
A testa ficou ainda mais enrugada.
“Você pretende vendê-la para o circo?”
O lento monólogo posterior de Frank me mostrou que talvez ele tenha ficado ofendido com a utilidade que eu dava para a arte marcial. Tinha me metido numa saia justa. O que o Pequeno Gafanhoto faria?
“Desculpe a minha afobação”, justifiquei, “Admiro muito a cultura oriental. Tenho grande respeito”. E contei até que minha mãe fora noiva apaixonada de um japonês, Massanori Inouê, poucos anos antes de eu nascer. O bocó resolveu fumar à porta numa noite tempestuosa e morreu partido por um raio.
“Mas ela deve ter passado vontade durante a gravidez, né? Percebeu como eu tenho os olhos meio puxados?”
Ele sequer moveu os lábios e levantou as sombrancelhas, escandalizado pela piada. Ainda bem que ninguém dá “golpe” de Tai Chi Chuan. E ainda bem que ele se distraiu com outra coisa.
“Foi a Priscilla que passou pela terceira vez de carro aqui na frente?”

Parte 4 e última - Not so abstract

Depois de confortar meu amor próprio com a solução da Priscilla, comecei a perceber que não acreditaria por muito tempo naquela idéia holista.
Então eu sou desastrado, MAS, em compensação, ela é distraída.
O que torna Deus um justo e equilibrado administrador funcionalista.
Eu sou desastrado, ela é distraída, Fulana é hermafrodita, Sicrano tem dois redemoinhos, Beltrano tem câncer nos testículos.
Cada um com seu problema, não dá para reclamar.
O fato é que não precisei pensar muito para lembrar que, além de descordenado, também vivo no mundo da lua.
Hoje menos, mas na infância isso era um fardo terrível.
Na época dos racionamentos, quando tínhamos que enfrentar filas enormes para comprar um pacote de leite, minha mãe me arrancava cedo da cama, ainda que chovesse, e me mandava para a missão no Supermercado Tuma.
Era o tempo do Sarney.
Em muitas ocasiões a gente ficava três horas, ao ar livre, esperando o mercado abrir e, na minha vez, já não tinha pacote sequer.
Mas o pior era quando eu acordava, como fazia todo dia, enfrentava a fila, como sempre, e, ao chegar ao balcão... não lembrava o que era para comprar.
Onde eu estava com a cabeça?
Gibis, talvez. Ou especulando sobre alguma aventura misteriosa no espaço, no centro da terra, em outra dimensão, ou imaginando como seria poder ficar invisível... eu tinha verdadeira adoração por Júlio Verne e H. G. Wells! Também me preocupava com outras banalidades do cotidiano: o fim do mundo, inferno, assombrações, morte, com as meninas... com as meninas!
"Não tem mais, piá".
"Ãh? Não tem mais o quê?"
Lembrei que deixei de fazer prova mais de uma vez porque não tinha caneta. E ela estava na minha orelha.
No final da adolescência, quando havia leite em toda a parte, passei por alguns constrangimentos por causa da distração.
Mas nada foi mais melancólico do que o episódio da camisa verde.
Eu adorava a camisa porque era muito parecida com aquela usada por Miles Davis na capa de Milestones, um dos meus primeiros discos de jazz e até hoje um dos favoritos.
Paguei caro por ela, moeda por moeda economizada.
Eu iria passar a noite na casa do Sílvio. No dia seguinte iríamos a algum evento.
Coloquei minha melhor camisa numa sacola e saí em direção à rua.
"Victor, pode deixar o lixo lá na frente?"
Peguei a sacola de lixo na outra mão e desci as escadas. Dia azulado, sol morno e delicioso. Arremessei uma sacola no latão e resolvi dar uma passada nas lojas da minha rua.
Mas comecei a me incomodar. Como as lojas de Ponta Grossa são mal cuidadas! "Que cheiro horrível nessa espelunca!"
Deveria ser algum problema no esgoto daquela quadra, pois a lanchonete ao lado, o correio logo acima e o sebo na esquina também cheiravam mal. Tomei o ônibus para o Jardim América e a curta viagem parecia não ter fim.
"Sílvio, o ônibus estava medonho!"
Com uma expressão meio estranha, ele pediu para me acomodar no quarto da Ana Paula, sua irmã, que estava fora. Fui até a porta, joguei minha sacola na cama e voltei para a sala, ver os novos vinis que ele tinha comprado.
Alguns segundos depois, a mãe do Sílvio:
"Ei, por que tem cascas de banana na cama da Ana Paula?"
***
Um problema na cabeça
Será que dá para compreender ou é uma expressão muito regional?
"O que você entenderia se eu lhe falasse que tenho dois redemoinhos?"
"Que você é louco".

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Keep up the good work. thnx!
»

11/8/06 15:48  

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