BOP!

Victor E. Folquening escreve, você lê e diz alguma coisa

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

Grupo de gestores para soluções estratégicas nas Faculdades Integradas do Brasil

quarta-feira, agosto 30, 2006

AO PÓ!

Zé Canelinha está há tanto tempo no ramo da miséria que não tem mais a menor idéia de qual é seu nome de batismo nem de onde veio.
Nos bons dias, as pessoas passam por ele, estirado na calçada, e jogam uma moeda grande, amarela, de 25 centavos, dentro de uma caixa esfolada de tênis Olympikus.
Nos dias ruins, que são mais freqüentes, os transeuntes olham de longe a canela em carne viva e osso esburacado, carcomida pela doença que ninguém arrisca batizar, e se amontoam na guia para evitar um contato ainda mais desagradável.
Nos dias piores, os mais remediados reclamam: "Não dá pra andar dois metros sem esbarrar num pedinte!" Essa senhora estava com os nervos à flor da pele e até se sentiria culpada, se lembrasse da cena mais tarde. O dia foi difícil: o primeiro avião atrasou e ela precisou ficar nove - juro pra vocês! - nove horas no aeroporto esperando a conexão.
É, a vida de Zé Canelinha foi uma desgraça.
Negro, doente e dono de olhos injetados de sangue, vítimas constantes do frio, do pó, da conjuntivite... mas quem se importa? "Olha a cara daquele ali! Encheu os pacová de pinga!" Não, diz a amiga dada a expert: "É maconha ou cola. Dá pra ver pelos dedos."
O pior, o pior mesmo, é nem sequer ter nome. "Zé Canelinha" pareceu melhor no dia que nosso amigo ouviu dois adolescentes falando bem de um tal de "Roque Ombro". Soava importante. Mesmo assim, o camarada deveria ter aquele apelido por causa de costas fortes, trapézio definido, figura de atleta. Definitivamente, não era seu caso. Se fosse, ficaria melhor Zé Canelão ou Zé-Canela-de-Ferro - embora esses dois, pelo menos na crônica esportiva, também representassem algo não lá muito positivo.
Mas isso estava para acabar e Zé Canelinha não conseguia esconder um certo entusiasmo.
Ele estava morrendo.
Sentia nas veias saltadas do braço, como se caroços se misturassem ao sangue e lentamente bloqueassem e depois apagassem os vasos, inutilizando-os ao ponto do esquecimento.
A garganta secava cada vez mais rápido e nenhuma água, nem quando era abundante açoite, tirava o gosto de poeira. A coisa se avolumava em sua traquéia, preenchendo as ramificações tão nitidamente que Zé Canelinha "via", como se olhasse o esquema de um fliperama, os caminhos outrora preenchidos de ar.
O pulmão se encolhia dia após dia. Os sentidos se embaralhavam.
Zé Canelinha não tinha forças para reagir.
Melhor: ele desistiu de reagir.
Entregando-se, primeiro com medo, depois com cuidado e, por fim, com inesperada alegria, o homem passou a esperar o dia em que fecharia os olhos como o despencar mudo de uma cortina de chumbo e só abriria para ver Nosso Senhor Jesus Cristo, leve feito pluma, levantar suas pálpebras num sopro.
Todas as vezes que foi tratado como nada, como invisível, por não ter documento nem nome, seriam segundos - menos! todas reunidas num milésimo de segundo! - na vida plena e esplêndida que lhe foi reservada na Eternidade.
Chegou.
No mesmo dia, ao anoitecer, o taxista do ponto na esquina resolveu espantar o cachorro que lambia o rosto desacordado. Estranhou a rígida imobilidade e cutucou Zé Canelinha com um galho. Depois chamou a polícia, pois não sabia bem de quem era a responsabilidade.
Não sabemos se o falecido tem noção de tempo, então isso pode parecer sem sentido: de qualquer modo, o corpo ficou guardado na geladeira do Instituto Médico Legal por um mês. É o prazo para que a família reclame o indigente. No caso dele, era como se fosse obrigado a esperar a próxima conexão por 720 horas.
Ninguém apareceu, como nós já esperávamos.
Na terça cinzenta que cobria o Cemitério Parque São Pedro, onde a prefeitura mantém mil covas stand-by para indigentes, o motorista do IML e os coveiros foram as testemunhas do enterro de Zé Canelinha, que agora se chamaria, pra todos os efeitos legais, 174628-Pinhais.
Ninguém estava triste nem feliz. Hamlet não apareceu de surpresa para fazer piadas sobre as caveiras, o chofer deu uma coçada na nádega esquerda e os coveiros ora saudavam, ora contestavam a "personalidade" do técnico Emerson Leão, que dispensou Carlito Tevez do Corinthians.
Ficou mais escuro, 174628-Pinhais! Só se destacam dois pedaços de dentes frontais, os únicos que sobraram, aliás. Parecem esboçar um sorriso. A libertação está muito próxima, nem teremos tempo para que o primeiro verme invasor seja recebido pelo morto; esse infelizinho não será o homenageado na dedicatória. Os vermes antigos já faziam um "trabalho entrópico", digamos assim, e o morto é do tipo que valoriza o pessoal da casa.
A luz começa a aparecer.
Está no céu, no hall de entrada para a Eternidade.
É lindo e inexplicável. As nuvens se avolumam ao longe e aos pés dança um azul profundo. 174628-Pinhais vê o portão, grande e imponente, guardado por um anjo de rosto delicado.
Há algo brilhante além da grade e a felicidade reverbera pelo ar. Só esse soprinho minguado já é mais do que 174628-Pinhais teve a vida toda. Tem direito de querer mais? Sim, ele conclui. Mais, sempre mais, por detrás do portão o mundo é o Rio de Janeiro sem violência ou pobreza e todas as pessoas falam frases do Chico Buarque até para as operações mais simples do dia-a-dia.
174629-Pinhais cumprimenta o anjo com um aceno de cabeça, toma fôlego preenchendo o que pode no seu diminuto e empoeirado pulmão, e dá um passo decidido, outro dolorido e torto em direção ao paraíso.
Na linha da porta, o anjo desce o braço, interrompendo a passada como se fosse uma cancela. Olha para o recém-chegado e pede:
"A identidade, por favor".

quinta-feira, agosto 24, 2006

CANÇÕES ANIMADAS # 5! Lopez solta a voz e uma quadrinha sobre bicho de estimação

A ADMINISTRAÇÃO É BÊBADA, MAS EU PARO QUANDO QUISER
(letra e música: V. Folquening)
Intérprete: Hernandes Lopez
Álbum: Rocky Ombro Picture Show Soundtrack
Gravadora: Zongo Comix Records


Bote mais dois dedos ali,
Mas, cuidado,
O copo maldito quer fugir!
Vou deixar avisado
Pra quando algum bebum
Surgir.
Tome cuidado com o copo!
Desse jeito ele vai
Cair.

Estico a mão e não pego
Esse maldito copo!
Além de trupicar feito
Cego
Agora ele também sai
De foco.

Vou escrever no meu
Diagrama uma coisa
Bem linda
De um lado vou pôr os
Problemas
E na parte da solução:
A pinga!
**
DO QUE GOSTA A BICHANA?
Um poema recitado por Xana Aparecida no estilo beatnick.

Todos sabem que a bichana
Gosta de biscoito
Como ela se saciaria
Se o alimento fosse mais afoito?

quarta-feira, agosto 23, 2006

O AVATAR # 10! Estrelas da morte não são exclusividade de Darth Vader

Episódio de hoje: “Há algo de podre na 77a DP – parte 2”

O prédio anexo à Paróquia de São Bisonho da Imaculada Corcunda serve de sede
para muitos grupos de apoio a marginalizados.
Estranhamente, eles se reúnem
de madrugada, o que permitiu um aproveitamento eficaz da crise de insônia vivida
pel’O AVATAR.
As vozes misteriosas guiam os passos de nosso herói. No
final do percurso, o tenente Lopez será obrigado a dar algumas explicações. Isso
se a morte horrível de um personagem importante, com requintes inéditos de
perversidade sexual, não atrapalhar o plano do detetive mais soturno da
cidade.

Rocky Ombro entrou primeiro, por engano, na sala em que se reuniam filhos traumatizados de escritores policiais. Eles sofrem de Suspense Desnecessário.
“Pode me passar a... salada?”
“Talvez eu te diga o que tem nessa salada. Mas antes, há uma coisa ou duas sobre o sal que gostaria de lhe perguntar”.
“Não vai me fazer falar. Por favor, passe a... salada!”
“Você quer mesmo a... salada?”

Na porta seguinte, a reunião de Infografistas Megalomaníacos.
“Aí eu disse para o repórter: essa matéria tá toda errada”.
“Repórter é tudo boçal”.
“Um dia vão valorizar quem realmente é importante num jornal”.
“Apoiado! Apoiado!”
“Não há mídia sem infografistas!”
“Viva a Folha de S. Paulo!”

A terceira levava ao destino. Sorte de Ombro que alguma confusão com pessoas saindo e entrando permitiu que ele se acomodasse, anônimo, num canto escuro da sala. Sentado com a gorda coluna vergada, de costas para o detetive, o tenente Hernandez Lopez erguia a cabeça, vez e outra, para fingir interesse nos depoimentos dos alcoólatras em recuperação.
Uma mulher que também chegara depois, visivelmente embriagada, começou uma nova rodada de conversa construtiva e libertadora das trevas do vício e da indisciplina.
“Meu nome é Genoveva e eu sou uma bêbada filha-da-puta”.
“Bem-vinda, Genoveva”, todos responderam mais ou menos em uníssono.
“Vou contar um troço nojento. Nojento. Tô dizendo que é nojento, pô. Largue do meu braço! Antes de entrar pra esse programa, minha vida tava uma merda”
“Uma merda!”, gritou um dos presentes.
“Amém!”, berrou outro.
“Procês terem uma idéia”, Genoveva continuou, “no mês passado, eu meti a manguaça valendo!Entornei duas, tô dizendo, duas garrafa de arco direto. Arco, mesmo. Arco de passar no vidro”.
“Nossa, e o que aconteceu, professora?”
“Entrei em coma, já tava vendo Cristo e os apóstolos, todos eles, uns vinte, abrindo os braço pra me receber no Céu”. Ela interrompe a narração para apertar os olhos emocionados. “Eu pensei: é tudo muito lindo aqui, mas não tá na hora de eu me entregar pros paraguaio”.
“Não podemos nos entregar!”
“Muito bem, mamãe, não podemos nos entregar!”, gritou um outro, puxando uma salva de palmas.
“E eu corri da luz que tava na minha frente, com Nosso Senhor e muitos apóstolos sorrindo e me chamando, corri pra escuridão e... e encontrei esse grupo de apoio que tá salvando minha vida!”
“Eu tenho uma pergunta”, interferiu outro, mais bamba que uma saracura de patins, “A gente diz O coma ou A coma?”
Um diz-que-me-diz tomou o ambiente por alguns segundos, até que um anão fantasiado de tubarão-martelo se arriscou:
“É o coma!”
O perguntador esboçou uma cara de esperto, apertando um olho e chacoalhando a cabeça lentamente. Deu uma cotovelada amistosa no vizinho e disse: “Pergunte como ele sabe, pergunte”. Como o rapaz, na verdade mudo e surdo (e alcoólatra), não reagiu, o curioso resolveu lançar ele mesmo a questão.
“Você já esteve em coma, cabeçudo?”
“Não”, o anão respondeu.
“Então como é que você sabe?”
O anão se enfureceu. Surgiram dois shurikens das suas mangas – teriam acertado em cheio o rosto do oponente se o tenente Lopez não levantasse uma pasta marrom, interceptando as estrelas. O policial retirou a Magnum de 15 tiros que estava acomodada na cintura da calça, com o cano entre as nádegas, e atirou para cima.
“Não vou permitir tumulto por aqui!”
Houve um silêncio. O anão baixou a cabeça, andou até o outro lado da roda e abraçou a cintura do mesmo sujeito que tentou matar alguns segundos antes.
“Desculpe. Eu perdi a cabeça. Mas eu te amo, amo todos aqui. Amo todos vocês!”
Aplausos.
“Vamos lá, mamãe: nessa longa estrada da vida...”
E todos começaram a cantar e se abraçar.
Lopez levantou, satisfeito, e no segundo passo em direção da porta, percebeu Rocky Ombro, encostado na parede enquanto acendia o cigarro e dava a primeira tragada:
“Ombro, não sabia que você tomava”.
“Às vezes eu tomo, tenente, mas em geral eu peço antes”.
“Espero que o que tenha visto aqui fique entre a gente”.
Ombro pensou em como ajeitaria dois shurikens, um anão-martelo e uma dúzia de bêbados no pequeno espaço entre ele e o tenente Lopez.
“De tudo que presenciei hoje, chefe, o mais impressionante foi a rapidez como evitou que as estrelas-ninja retalhassem aquele pinguço”.
“A gente passa por um treinamento duro na Escola de Tenentes de Frankfurt”, e foi saindo, lacônico.
O AVATAR deixou que Lopez atravessasse a porta e concluiu:
“É realmente uma pena que não tenha demonstrado a mesma habilidade para salvar Peter Folk da flecha envenenada...”
O tenente interrompeu o passo, reteve o peito estufado, tremeu uma pálpebra e voltou a andar: “Desculpe, detetive, tenho que ir. Preciso de um trago”.
Ombro já tinha a solução do caso em mente. Bastava conduzir com cuidado a reconstituição de um crime no dia seguinte. O resto cairia como peças de dominó. Em silêncio, agradeceu a seus “amigos” espirituais, o sargento Strinksmeyer e Folk, e sentiu um profundo alívio por nenhum personagem ter sido assassinado com requintes de perversidade, o que fatalmente atrapalharia as investigações.

No próximo episódio: Uma reconstituição de roubo vira um teste psicológico. Observem a reação do tenente Lopez: ele agüentará impassível a encenação de um crime do qual tenha, quem sabe, participado? Não perca: “Há algo de podre na 77a DP – parte 3”

segunda-feira, agosto 21, 2006

PIMENTA MAGNÉTICA # 10! Abri a porta armado

Alguns sons são líquidos e outros são secos, você diria horas mais tarde.
Aqueles não eram.
O primeiro foi cheio e tão pesado que não vi carne grave naquela nota. Um peso que parece ser mais sentido pelo solo do que pelo cadente, por ventura lhe restasse vida para.
Tudo diria que o segundo fosse agudo para merecer o diagnóstico de secura; talvez seguido de um sibilo em bemol se arrastando para longe da porta, finalmente interrompido pelo que pareceu superfície vertical.
Mas não seco assim. Tão novo, era inédito. Não na imaginação. Vi tantas vezes adoçado ou estremecido nos quadrinhos, na TV, nos filmes ou nos livros. Como foi fidedigno, não parecia pertencer ao mundo real. Então não era líquido nem seco. Não era nada.
E antes disso, o BANG.
Voltei a sentir meu corpo e olhei para você, rosto vazio voltado para mim e os olhos escondidos no canto das órbitas. Pensei na faca e fiz menção de guardá-la, mas considerei coerente mantê-la em punho. Ao abaixar a cabeça, percebi que meu pênis continuava ereto, impassível, como se o coito tivesse sido interrompido exatamente naquele instante.
“Vou abrir a porta”.
Comecei sussurrando, mas achei a situação ridícula e permiti que a voz se avolumasse ao longo das quatro palavras, de modo que o “abrir” saiu meio trêmulo e infantil até que “porta” se arredondasse pelo sotaque ponta-grossense.
Você ergueu as pálpebras e pronunciou os olhos com gravidade, mas não sabia o que isso deveria significar. Talvez lembrasse que era melhor eu me vestir, de qualquer forma. Eu praticamente não pensei a respeito e quem sabe tivesse em mente apenas abrir uma fresta que permitir esconder que estava armado.
Não me ocorreu que a hipótese era estúpida. Qualquer fosse a imagem além da porta, me obrigaria a abrí-la totalmente. Não havia como evitar o envolvimento com o que tenha acontecido ali fora. Essa tolice, no entanto, só se revela agora, quando refaço os passos que cercam os estranhos acontecimentos desencadeados naquele início de noite.
A surpresa nos devolveu a vertigem.
Coloquei a metade do pé esquerdo no tapete externo do apartamento e a iluminação automática do corredor foi acionada.
Na minha frente, portas dos dois apartamentos vizinhos e, ao longo da parede esquerda, os elevadores. Junto à direita, um vaso com folhagens.
Não havia nada além no corredor.

domingo, agosto 20, 2006

ALGO OU ALGUÉM # 1! O viaduto dos Neves

Eu sempre quis escrever histórias de visagens e mistérios arrepiantes, mas me
sinto intimidado pela aparente vantagem da tradição oral sobre a escrita nesse
tipo de relato. Fantasma é algo para descrever com recursos cênicos. Mas
sonhei essa noite com isso, talvez influenciado pela promessa de
pescar com meu pai. É um sinal e, ao contrário do personagem real do conto
seguinte, achei melhor não desprezar. Tenho um capítulo novo da Pimenta
Magnética e dois outros do Rocky Ombro para postar, mas fiquei com preguiça de
passar de um computador para outro. Nesse meio tempo, espero que
aproveite a primeira de uma série de histórias verdadeiras que
coleciono desde criança. Senão para se divertir, pelo menos como advertência.


O Viaduto dos Neves

A névoa é densa em praticamente todas as manhãs do ano. Lá pelas oito horas, como numa mágica, sem que percebamos direito, entretidos com o suave estalo da bóia sendo engolida pelo rio, a cerração vai embora e, quase sempre, o sol revela as cores vivas da água e das pedras, galhos e arbustos das margens do Tibagi.
Mas não são nem sete e a luz futura é um mistério. Pela experiência, ele sabe que daqui a pouco esse cinza sujo vai se substituir por névoa mais clara – e isso sempre cria o efeito de calor. O frio se vai e, se você estiver num dia de sorte, terá a mente totalmente empregada na acomodação dos lambaris no samburá. Sentirá um arrepio rápido e revigorante quando, em pé na proa, perceber o barco balançar e, no dobrar do joelho esquerdo, cogitar um banho na água turva.
A seqüência de pescarias triunfantes parece ter sido quebrada, no entanto. Ele está matutando que, adulto e estudado, não se livra do costume de observar os “sinais” completamente desprovidos de sensatez que norteiam as pescarias. Desta vez, sustentado por um inesperado orgulho cético, não deu ouvidos a pelo menos dois indícios de que o rio não estaria para peixes.
Desde que firmou o compromisso íntimo de pescar toda semana –depois de atropelar um carrinheiro, girar o automóvel 360 graus numa avenida movimentada e se deparar com um adesivo no vidro traseiro de um Fiat 147: “Tá nervoso? Vá pescar!” – é a segunda vez que vai para o rio fora da madrugada de sábado. Da outra, também aproveitando um feriado forçado por luto dos proprietários da firma, se arriscou numa quarta-feira. Voltou para uma mulher irritadíssima – o encanamento estourou, entrou ladrão, o pequeno quebrou o braço – e sem nenhum peixe, a cara cheia de mordida de pernilongo e constrangedor bafo de cachaça.
É terça-feira, o que dá certo incômodo. Mas, oras, ele não estudou quatorze anos de sua vida para se fiar somente na superstição. Aprendeu a fazer uma fria auto-análise: o sentimento de incômodo era a velha culpa cristã. Todo mundo trabalhando e você pescando em pleno meio da semana! Além do mais, um raio não cai duas vezes na mesma caiçara (mais um braço quebrado? Outros ladrões? A pia entupida?) e o excesso de bebida foi um desculpável acidente – ele abre a caixa de isopor e, como se estivesse provando para algum anjo de guarda, arrisca o dedo entre os cubos de gelo para confirmar as restantes três latinhas de Pepsi e uma de Choco Milk.
A bruma acinzentada parece se adensar. Um som pesado e repentino corta a atmosfera. Vem de cima, provocando curiosa desarmonia no cenário até então compacto. O barulho quebra o mantra peixe-água-bóia engolfada-memória-peixe-água-bóia engolfada-memória que configura o prazer verdadeiro que ele tem de lançar a linha e esperar a fisgada. É o som bruto de um caminhão vazio, chacoalhando a carroceria e quicando vez e outra as rodas suspensas. Ele olha para o alto e desenha mentalmente as placas de cimento no chão do viaduto estalando com o peso da jamanta.
Então o bote está sob o viaduto! O outro sinal, desprezado com certa insolência. Antes de sair, ontem à noite, ligou para o sogro. “Banho na minhoca?” O velho parecia animado, recuperou-se bem da pneumonia e precisava mais do que os dois braços amputados para recusar uma pescaria. “Vou experimentar a região do primeiro viaduto, perto da chácara dos Antunes”. Nesse ponto da conversa, o sogro diminuiu a altivez e passou a procurar desculpas. “Você diz... no viaduto das cruzes dos Neves?” Esse mesmo, pega a estradinha ruim e agüenta uns solavancos uma meia hora. Dá pra deixar o carro no descampado. Nessa época o bote desliza bem entre as pedras... “Agora eu lembrei! Tenho consulta amanhã cedo. A véia me mata se eu perder”. Bom, na hora ele pensou: o cara é sempre companheiro, deve ter trêta. De qualquer jeito, não é o fim do mundo – deu a deixa para que concluísse, satisfeito, que enfim tinha encontrado sua religião, seu momento íntimo de reflexão, numa combinação solitária de sua integração consigo mesmo e com a natureza. Pescaria. Pescar sozinho é o claustro requerido para limpar sua alma e renovar os votos.
Mas a divertida revelação mística foi repentinamente embora quando, exatamente às 3h47 da madrugada de segunda para terça, encontrou o ponto de referência da estradinha e ouviu os pneus se arrastarem no cascalho fronteiriço com o asfalto. As três cruzes, no fim do viaduto, ainda decoradas com as flores de plástico dois anos e meio depois do acidente. Contra a luz dos faróis, no torpor inescapável da noite silenciosa, a impressão é que os frágeis monumentos acompanham o viajante. Durante alguns segundos, parece que as cruzes avançam pela margem e se postam em frente ao carro, como se empurrassem o motorista para um determinado caminho, cercando seu destino.
Trabalhou durante anos como representante comercial entre Palmeira e Ponta Grossa; não poderia se intimidar com cruzes ao longo da estrada. Lembranças doloridas dos acidentes têm seu valor. Servem como as carcaças de aço e ferrugem exibidas em cada posto rodoviário: “ande devagar, senão...”
Mas as três cruzes acionaram outra memória, um fragmento capturado de uma conversa alheia, não sabe mais onde ou quando. Alguém dizia: “Não dá nem peixe no viaduto que os Neves desapareceram”.
O bote balança mais. Ele sente, às costas, que uma pedra, talvez, tenha acertado o casco. Mergulha os dedos na água escura e tateia a madeira cuidadosamente. Nenhum rombo desse lado. Então é por isso que ninguém vem pescar aqui? Com a mão direita, passa a examinar o outro lado. Retira a mão, limpa do galho, e retoma a superfície. É besteira, ninguém deixa de pescar porque dizem que tal lugar é assombrado ou coisa assim. Na névoa, nem se deu ao trabalho de virar-se para a proa: quase deitou de costas até alcançar a quilha anterior.
A palavra “assombrado”, no entanto, assaltou sua concentração e só pensaria em rombo se efetivamente o encontrasse. Recordou de outro momento, bem mais recente, que já havia sido arquivado na memória. Quando a alvorada deu cor à cerração, distraiu-se adivinhando as formas torpes desenhadas na paisagem ciliar. Contra o ar pesado, cada árvore, cada pedra, cada coisa parecia com outra – como as nuvens. Num rasgo da bruma, a araucária mais afastada lembra um martelo, do qual despenca um objeto curvo, que então plana e depois ganha o espaço por se tratar, na realidade, de um gavião-pombo. Vê um rosto de nariz pronunciado e sobrancelhas esdrúxulas, como num cartum, mas não deixa de perceber que é um marmeleiro. O punho irrompido da superfície é uma pedra. Nada disso se move, o que lhe decepciona um pouco, pois nunca viu, nas pescarias, uma capivara, jaguatirica ou outro bicho que justificasse sair contando. Uma paisagem terrestre completamente imóvel. Menos...
Menos aquelas duas manchas borradas na ponta do rio, a uns quinhentos metros da sombra do viaduto. Tentou criar uma forma original para aqueles vultos, mas não conseguiu definir o que eram "de verdade". Com o que pareciam, ele sabia. Com pessoas. Uma delas um pouco mais alta. Lado a lado, indicavam algum tipo de vigilância. Cansou do exercício de criatividade quando já se dedicava a preparar as iscas. Mas metros à frente, ao levantar a cabeça, percebeu de novo as imagens misteriosas em sua vigília. Não era um pessegueiro ou uma pedra ou um tronco. Não sabia o que era e, enfim, deixou para descobrir na volta, quando o sol a pino estraga o imponderável.
Um novo toque em algum ponto do casco. Foi um pouco mais forte, de modo que a contundência roubou-lhe os sentidos e, por isso, silenciou a mata, a madeira cortando o rio e o constante mergulhar da bóia de isopor. Ele só sentiu, pela primeira vez naquela manhã, o ar gelado invadir o corpo pelas frestas da roupa. Como se um dedo petrificado avançasse pelo colarinho e cruzasse a espinha espalhando o frio. Ainda assim, a nuca esquentou e as narinas foram tomadas por uma secura improvável, deixando a mente embotada. Desajeitado, mas vagarosamente, ele resolveu virar o corpo em direção aos fundos do bote.
Antes de examinar a proa, viu um brilho opaco despontando da água, uma quina metálica, enferrujada, que descia pela espuma provocada pelo agito repentino em esmalte e vidro quebrado.
Ele fixou os olhos na descoberta e, por impulso, continuou o movimento de virar-se para a traseira do barco.
Largou a vara para se apoiar, em choque, na borda. A voz saiu num soluço:
Quem é você?”
A mancha era escura e pequena, tristemente acomodada no canto.

terça-feira, agosto 15, 2006

SPACEJACKS! Proposta para seriado de tv

Episódio-piloto: "A poeira das estrelas não sai com sabão comum"
“Estamos aqui para explorar e conhecer novas culturas”. A frase ecoa no
espaço, abrindo cada nova aventura. Ela é do capitão Joaquim Monsanto-Monsanto,
chefe da tripulação do Mike Special Offer this Holliday 12, a nave estelar que
leva a verdadeira cultura da Terra para os confins do Universo. O maior
acionista do conglomerado Tine-Monsanto-Werner-Mike-McDrakula Coop e, portanto,
presidente da Federação dos Países Ocidentais Unidos Contra o Terror e a Favor
da Economia de Mercado, doutor Francisco Pereira Azevedo Hildenmayer, presenteou
uma jovem equipe com a tarefa de cruzar o cosmos em direção a novas culturas e
civilizações, ávidas por produtos promocionais ou potencialmente fornecedoras de
mão-de-obra não sindicalizada.
No entanto, o enorme esforço intelectual, financeiro e físico para a maior jornada da história do homem não deu, ainda, o resultado esperado. Quarenta e cinco anos depois de ter partido de Washington-Lever-Esso D.C., a Mike 12 não encontrou uma alma viva, mais ou menos morta ou meramente capaz de produzir sinais aleatórios e desprovidos de sentido para compensar os 87 quadribilhões de aquaeurodolares investidos no programa.
Por isso, a vida a bordo da Mike 12 deixou de se focar na exploração do universo para se limitar a crises de meia-idade, adolescência, gravidez precoce, problemas digestivos, amizades, perda da virgindade e mortes daqueles animais de estimação que conquistaram até os mais sisudos.
“Como é a Terra, mamãe?”, pergunta Cleverson Maclanchefeliz dos Santos, um dos muitos spacejacks da nave. Spacejacks são pessoas nascidas no espaço – como você já deve ter entendido, mas, vamos e venhamos, não há muita chance de que a redundância tenha saído da mídia em 2093.
“A Terra”, começa a recitar a dra. Savagina Creamcrackers dos Santos, olhando sonhadora para uma fresta da escotilha, “como diria um antigo pensador, Guilherme Looseweightnow Arantes Askmehow, é o planeta mais Coke do universo!”
“Me ensina poesia, mamãe?”
“Já terminou tudo?”
“Já sim, já sim, já sim”.
“Ei, ei, pare de pular feito a Barbie Sem-Gravidade”.
“Ah, tá bom, mommy”
“E não faça esse bico... Ei! O que é isso aqui?”
“Nada, nada, mamãe!”
“Deixa eu ver... Um tufo de barba! Nada de poesia. Você nunca faz a barba direito!”
Cleverson correu dali para esconder os olhos encharcados. No caminho, encontrou Eloir Vendocelta2007dirprop de Antunes, outro spacejack num terrível período de mudanças.
“Vamos jogar RPG?”
Ah, como uma antiquada invenção da Terra ainda resolve qualquer mau humor! Tanta tecnologia, tanta ciência, tanto estudo... mas nada supera o bom e velho jogo em que fingimos possuir cajados de madeira que emitem bolas de fogo e transformam pessoas em vidro! Os jogos de RPG atingiram um espetacular grau de desenvolvimento em 2093, permitindo aos participantes mudar completamente o cenário, desenvolvimento e desafios da brincadeira.
“Vamos fazer um no Planeta Friends?” É um jogo para 8 pessoas em que o objetivo principal é refazer a amizade com um dos personagens do grupo, sorteado no início, que está magoado porque trocaram sua cadeira favorita de lugar. Nas etapas mais densas, os jogadores podem formar grupos de meninos contra meninas.
“Vamos! Mas o Planeta Friends Cristão!” Nessa versão, 7 formigas felizes devem converter uma saúva mau humorada cantando “I’ll be there for you, Jesus!”. É um jogo muito popular porque envolve karaokê, estética kitsch cristã, jingles famosos, softporn e propagandas “iradas” de televisão.
“Por que está com essa cara preocupada, doutora Savagina?” A pergunta é do alferes Gustavo Gustavoborges Borges.
“É o Clev. Eu entendo porque ele anda distraído, não faz a lição e passa tanto tempo no banheiro descascando uma mandioca violenta... Amanhã ele faz 35 anos e ainda é o típico piá de apartamento”.
“Puxa, se eu pudesse correr nos campos da Terra... e não desmanchar por causa da radiação, como aconteceu com meu primo Frychicken Júnior”, lamenta o sonhador Gustavo.
O interfone:
“Dra. Savagina, o capitão pede que venha à ponte de comando. Urgente!”
Capitão Monsanto nunca sai da cabine principal da Mike 12. Em primeiro lugar, porque há uma superpopulação na nave. Além disso, aos 90 anos, sem espaço para fazer exercícios e praticante de uma dieta baseada em alface azulada, fornecida por seu empregador, Monsanto perdeu toda a flexibilidade.
“Sabe, doutora”, começa a falar de costas para a recém-chegada, mãos entrelaçadas atrás dos quadris, empinando o corpo na ponta dos pés e admirando a pequena escotilha que oferece o infinito, “Construí uma carreira sólida no ramo de defensivos agrícolas. Quando me ofereceram essa missão, eu imediatamente pensei que era a oportunidade de espalhar o bom e velho organofosforato pela galáxia, como fizemos com as terras inférteis do Vietnã no século 20 e na extinta cidade de Ponta Lojãodoqueima Grossa no século 21. Confesso que até essa manhã desconfiava que os cinco bilhões de litros de veneno que ocupam 89 % da Mike 12 seriam apenas lixo espacial. Minha missão, como pode ver sem pena, caminhava para um fracasso”.
“Ah, só corrigindo, capitão: 80%. Precisávamos liberar espaço por causa daquilo-que-a-Federação-não-pode-saber”. Naturalmente, a Federação Ocidental, governada por uma coalizão cristã radical desde 90 anos atrás, proibiu sexo a bordo da Mike 12. Até hoje o comando estelar acredita que há 45 – e não 350 pessoas – no cruzador espacial. Uma das sócias da operação, a própria Monsanto, havia se encarregado de desenvolver uma procriação segura, geneticamente controlada e sem ziriguidum, telecoteco, balacobaco.
“Não importa. O que importa é aquilo. Vê aquele ponto no espaço?”
Educadamente, a dra. Savagina tenta distinguir um entre os bilhões de pontos rigorosamente iguais, pois o capitão Monsanto há seis meses não consegue relaxar as mãos ou os pés. Percebendo a dificuldade, chamou a rotunda Oficial de Comunicações Rosimeri Façoassessorialigueagora Gusmão. “Mostre para ela, tenente”. Gusmão ergueu o corpo frágil, mas inflexível, e apontou com a cabeça do comandante.
“Lá é um planeta. Detectamos condições semelhantes às da Terra!”
Savagina estava com o coração aos pulos, mas não pôde disfarçar a decepção:
“Puxa, que pena. Não conseguiremos pousar em um lugar sem atmosfera respirável com nossos equipamentos ultrapassados”. Na verdade, um contrato entre a Federação e a Intecontinental, famosa fumageira da América Latina, obrigou a equipe da Mike 12 a utilizar apenas equipamentos de segurança derivados das máscaras para pulverização de lavouras fabricados em 2030.
“Cadê sua fé, doutora?”
Rosimeri troca olhares com o capitão e, depois de um “sim” com a cabeça, vai até o vidro da escotilha, limpa o pó e retira um adesivo quase centenário.
“Isso estava no meu carro quando eu nem imaginava que chegaria tão longe”, prosseguiu Monsanto. “Chegou a hora de lembrar Dele e aceitar a missão que nos ofereceu”.
Savagina tomou o adesivo amarelado, decorado com cabelos curtos e duros acumulados através dos anos e leu em voz alta: “Não sou dono do mundo, mas tenho cargo de diretor em uma Multinacional e sou filho do dono, Deus Pai”.
“Isso mesmo”, bradou a médica de bordo, “nenhuma radiação, poluição, chuva ácida, raios ultra-violetas ou doenças mortais transmissíveis pelo ar podem com Nosso Senhor ou com a economia livre de mercado. Já estou preparada para o grupo de desembarque, senhor!”
“Coloque seu capacete!”
“Jesus usava capacete, capitão?”
“Tem razão! Somos os novos Cruzados! Vamos levar agrotóxicos, tênis modernosos e a Palavra para todo o universo”.
“Seguuuuuuuuuuuuura, cristão!”

No próximo episódio: A tripulação da Mike 12 perde o capitão, médica de bordo e seis grupos de oração. O novo comandante da espaçonave, Cleverson Maclanchefeliz dos Santos precisa amadurecer rápido no cargo, mas uma espinha fora de hora pode estragar toda a cerimônia de posse. Não perca: “As torradeiras sonham com pães elétricos?”

E ainda hoje na programação: Um novo epísódio de "O Avatar".

quinta-feira, agosto 10, 2006

CANÇÕES ANIMADAS # 4! Could you guess my name

COULD YOU GUESS MY NAME?
(letra e música: V. Folquening)
Intérprete: Xana
Disco: Rocky Ombro Picture Show Soundtrack
Selo: Zongo Comix

Não quero ser oferecida
Mas vou dizer
Porque mudei de vida
E a partir desse ano
não me chamo mais
Maria Aparecida.

É um nome praqueles que zombam
Da Bíblia
Que diz, linha por linha,
para fugir do pecado
Tem que largar
o baseado
Sem mais Maria
Sem mais imagem
Sem mais orgia
Sem mais sacanagem

Me batizei com pastor legalizado
Bem baratinho
Num dia abençoado
Nome de santo é igual nome do Diabo
Nome de santo é igual nome do Diabo
Nome de santo é igual nome do Diabo

Escolhi um que ao se dizer
O capeta pega as tralhas e some
Muito prazer em conhecer
Poderia adivinhar meu nome?

É um nome que não ofende
Gente de bem, gente bacana
Nome gostoso de tirar da boca
Só pode ser
Xana!
Que desviado pode se chamar
Xana?
Xanana xanana xanananananaaaa
Nome de santo é igual nome do Diabo
Nome de santo é igual nome do Diabo
Nome de santo é igual nome do Diabo

CANÇÕES ANIMADAS # 3! Shopping this cool brit pop

SHOPPING THIS COOL BRIT POP
(letra e música: V. Folquening)
Intérpretes: Cassius & Linus Galagher and The Melancólicas Menstruais
Disco: Rocky Ombro Picture Show Soundtrack
Selo: Zongo Comix

Gimme the key car, mommy
Gimme the key car
I wanna go shopping now
Go shopping
Now
Now

(rif de guitarra)

Millions of people are so sad and stupid
We are so sad and smart
Why these things need to be that?
Because
My fat rat uses a bat hat?
Yeh, because
Cause
Owl
It’s perfect to bring from the mall
Rú – Rú – Rú

(solo de balalaica, seguido de violoncelo e alguém gemendo liricamente)

Millions of people are so ugly and fool
But we are so fashion and cool
Gimme the key car, mommy
Gimme the key car
Wanna go to shop now
Go shopping
Now
Now

terça-feira, agosto 08, 2006

CANÇÕES ANIMADAS # 2! Blues do Desempregado

BLUES DO DESEMPREGADO
(letra e música: V. Folquening)
Intérprete: Geraldino Bocaiúva
Disco: Rocky Ombro Picture Show Soundtrack
Gravadora: Zongo Comix Soundtrack


Essa é uma gravação solo, baby
Essa é uma gravação solo
Me chutaram da banda
Porque não sei jogar pólo.

A gente sempre paga o preço
Por ser direto e franco
Sei que não tem nada a ver
Com nosso empresário ser branco

Essa apresentação eu faço sozinho, girl
Essa apresentação eu faço sozinho
O Zé Polaco me expulsou da banda
Pra colocar um sobrinho

Te digo com certeza
Ninguém tem nada a ver com minha tristeza
Quando termina o show
Eu volto pro serviço de limpeza

Já combati muito crime feio, baby
Já combati muito crime feio
Ainda não acredito como a polícia
Me jogou para escanteio

Agora estou de novo na fila do desemprego
Agora estou de novo na fila do desemprego
Será mesmo coincidência
Essa palavra rimar com negro?

CANÇÕES ANIMADAS # 1! Canção de Elizabete

CANÇÃO DE ELIZABETE
(letra e música: V. Folquening)
Intérprete: Rocky Ombro
Álbum: Rocky Ombro Picture Show Soundtrack
Gravadora: Zongo Comix Records


Elizabete tem uma frase,
Um sopro de esperança
que me faz muito bem
Outros lamentariam,
mas ela sempre diz
ORROCOS, IUQAD ERIT EM
E isso é que me faz feliz.

Nada que aconteça
Com esse detetive
Vai fazer com que encolha
O amor que sempre tive
Por aquela garotinha
Encarcerada na bolha.

Por isso, ouça bem
Quando Elizabete bate no plástico
E escreve no bafo:
ORROCOS, IUQAD ERIT EM
É uma carta de amor
para o papai e para mais ninguém!

Nesse Natal, abrace o vizinho
E ame não importa quem
Mande cartões e ofereça vinho
Porque se Jesus estivesse vivo e bem
Também diria
ORROCOS, IUQAD ERIT EM

sexta-feira, agosto 04, 2006

O AVATAR # 9! Talvez Ombro precise se fingir de louco para resolver essa

Episódio de hoje: "Há algo de podre no 77o DP"

O tenente Hernandez Lopez chegou de olhos vermelhos. Na sua mesa, um porta-retratos exibe aquele que mais ama, aquele que espera todos os dias para beijar e sentir descer escorregando pela garganta, tão doce e espoleta que é: Jack. Jack Daniels.
“Eu posso parar a hora que quiser”, disse para o cachorro que o flagrou com o uísque nas mãos.


O chefe acha, no fundo, que tem o direito de comemorar. Afinal, a delegacia está decorada para o lançamento do seu segundo livro: “Nossas Experiências Correcionais”. O tenente assina como organizador e com um texto revolucionário.
“Eu estou muito feliz de, mesmo fora da delegacia, contribuir com minha vivência do lado de cá das grades”, celebra a agora professora de português instrumental Rosimeri, tentando disfarçar as mangas curtas do casaco de soft que emprestara da filha. “Çolussões Para o Lotamento das Selas” abre o volume, seguido da contribuição feita pela detetive Xana: "Cumprindo a pena com Jesus, o carcereiro que escolheu nos amar".
Rocky Ombro não é do tipo que sorri por educação. “Tenente, li esse seu texto sobre o programa de fabricação de estiletes. Aqui não diz que é criação do falecido Peter Folk. Dá a impressão que foi o senhor que inventou”.
Lopez queria falar “ao pé do ouvido”, o que é bastante desagradável. “Nós achamos melhor não mencionar o Folk”, e deu uma pausa para lamber o pedaço de coxinha que havia grudado em sua barba, “traria publicidade negativa. Sabia que ele estava sendo processado por assédio sexual?”
Ombro se assustou. Folk não fazia o tipo desesperado. Será que o tenente não havia confundido com o recruta Colimério e suas mãos peludas? Além do mais, o departamento parecia ter uma política suave para esses assuntos. O próprio Lopez, por exemplo, era amante de uma funcionária e demitiu um subordinado porque ele fazia “brincadeiras ambíguas na frente da moça”.
“Uma das ex-detentas, a Sindy, alegou que ele estava manipulando os papéis para que ela continuasse presa mais três dias além da pena. Só pode ser porque ela recusou transar com ele”.
“Sindy? Aquela que usa uma camiseta decotada onde está escrito EAT ME?”
“Essa”.
“Sei. Ela trabalha lá na expedição agora, né?”
“Pobre anjinho. Ficou traumatizada. O pai da garota me disse que o Folk tirou a virgindade dela com o olhar”.
Ombro respeitava poderes telecinéticos. Mas algo naquela história não encaixava bem.
“Essa Sindy não foi presa por prostituição?”
A conversa foi interrompida por Colimério, que levantou a cabeça:
“Chá terminou, comandante? Pocho cushpir?”
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Mais tarde, em casa, Ombro procurava identificar o que parecia tão sem sentido na visível campanha empreendida contra o morto. Resolveu dar uma olhada no primeiro livro de Hernandez Lopez, um bem apanhado volume em que defendia a privatização da polícia. O título era sugestivo: “Vamos Deixar que os Ricos Decidam Quem vai Preso”.
Na obra, falava da beleza de celas mais confortáveis para quem pudesse pagar. “É a democratização do acesso à cadeia”, explicava na orelha. Fora isso, nenhuma pista. Ligou para Cassius, que dormia numa caixa no fundo da delegacia.
“Faz um favor pra mim? Vê se tem algum processo contra o finado Peter Folk”.
Quinze minutos depois, o agente dava o serviço: “Nada, detetive. Ninguém processou o camarada”.
“Te devo essa”.
“Ei, mais uma coisa. Sabia que o Folk se alimentava de cérebros de bebê?”
“De onde você tirou isso?”
“Colimério contou para a gente no refeitório noite passada. Mas não passe para frente. Ele só disse porque é nosso amigo, né?”
Rocky Ombro já havia visto Peter Folk comendo pierogui sem recheio, mas cérebro de bebê era um pouco demais.
Cansado de tanto pensar, O AVATAR se despediu de Elizabete, onde tinha apoiado os pés durante o telefonema, e foi para a cama.
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Um sonho enigmático tomou a noite.
O detetive estava numa espécie de torre falsa de vigia, como aquelas que enfeitam os restaurantes kitsch de Romeniatown. Havia neblina. Ele viu um vulto.
“Quem vem lá?”
A visagem vestia um sobretudo verde amassado. O rosto se escondia atrás dos óculos e de um chapéu de aba curta.
“Quem és tu que usurpas esta hora da noite da forma desleixada e fora de moda com que o sepulto detetive da 77a DP tantas vezes perseguiu e prendeu minorias?”, inquiriu O AVATAR.
“Me escuta, está quase na hora de voltar para o tormento das chamas do enxofre e eu nem tomei banho ainda”, impacientou-se o fantasma.
“Peter Folk! É você!”
“Não posso dizer que sou eu em carne e osso, mas sou eu”.
“Ah, meu amigo. Os salgados de vosso velório se tornaram os docinhos do lançamento de um livro picareta”.
“Cale-se. Se eu começar a encher teus ouvidos com as coisas que acontecem no limbo, arrancaria tua alma com a primeira palavra”.
“Desculpe, mas não consigo visualizar o que está dizendo”.
“Preste atenção. Divulgou-se que eu morri por causa de uma intriga amorosa e um processo por assédio sexual. Saiba que a serpente que espalhou esse veneno agora usa o meu próprio distintivo”.
“Xana!”
“Sim, essa besta incestuosa e adúltera. Com seu engenho maligno e dádivas de traição, empenha o poder de sedução para escapar impune”.
“Poder de sedução?”, pensou Ombro, “será que estamos falando da mesma pessoa?”
“Como morri logo depois de me masturbar pensando na Mara Maravilha, fui condenado a vagar por lojas de discos evangélicos até que meu assassinato seja vingado!”
“Não! Não me tortures com descrição de tamanho horror! Juro que serás vingado”.
“Vou te dar um telefone. Caso se perca ou não ache algum endereço, me ligue antes da meia-noite. Se não tiver na área de cobertura, mande uma mensagem que depois eu leio. O número é...”
Crash! Uma pedra arrebentou o vidro da janela e Rocky Ombro acordou. O objeto ainda ricocheteou no abajur e acertou o joelho do detetive. “Ai, ai, arde, arde!” Recomposto, recolheu a pedra. Havia um bilhete amarrado. “Era mais fácil me dizer, maldito hectoplasma”. Mas não era o telefone de Peter Folk. Tratava-se de uma carta com as letras recortadas de revista.
Não ce meta onde naum eh xamado.
Este eh o ultimo avizo. As. Eu mesma.
Hmm, quem teria enviado aquela ameaça? Certamente alguém ligado à principal interessada em manter ocultos os verdadeiros motivos do crime. Mas quem é ligado a Xana?
O próximo passo era claro para O AVATAR: Abrir o jogo com o tenente Lopez. E ele sabia exatamente onde encontrar o chefe naquela hora da noite. Um lugar onde não poderia levar seu amado Jack.

(continua)

No próximo episódio: O prédio que abriga os Alcoólicos Anônimos tem muitas portas. Algumas delas levam diretamente ao... perigo! Não perca: “Smoking, drinking, never thinking... on murder!”

O AVATAR # 8! Quem canta a balada do detetive morto?

Episódio de hoje: "O Comodoro da Ala Sinistra - parte 2"

Ombro estava disposto a tirar Elizabete daquele covil de abutres peçonhentos,
mas antes era prudente demonstrar calma e observar o lugar. Enquanto esperava a
filha terminar o turno, resolveu sentar ao balcão e esperar por algum sinal. Ele
veio em duas formas arredondas e uma voz atrevida.

No McDrakula todos os funcionários chamam-se uns aos outros de “Conde”. Um magricela terminava de limpar uma bandeja na lixeira em forma de urna funerária.
“Ei, Conde. Me vê um Bloodshake e um McSalame sem alho”, solicitou Ombro, tirando do bolso alguns recibos do cartão de crédito, moedas, dois clipes, uma goma de mascar grudada na embalagem (ele esqueceu de tirar da roupa antes de colocar na máquina) e um pedaço de papel impresso da internet.
“Nenhum de nossos produtos leva alho, senhor”.
Ali ao lado, o corpo desfocado na luz econômica da lanchonete ganhou definição.
“Ei, você não estava no Comoéqueé hoje?”, perguntou a garota entretida com um espeto de Nuggets Empalados.
“Percebeu que ainda está descabelada?”, respondeu com desfaçatez O AVATAR.
“A droga desse lugar é que os espelhos do banheiro não refletem pessoas”.
“Isso não é problema para o tipo de gente que mora por aqui”.
“Sindy”, e esticou o braço para cumprimentar.
“Ombro”
“O que é que tem?”, tentando enxergar as próprias costas.
“Não. Meu nome é Ombro, Rocky Ombro”.
“Rocky, então? Eu sei quem você é. Não lembra de mim, detetive?”
Claro! A mesma camiseta com brilho, tão decotada que era por ali que a garota sentia frio nas costas. Os pedaços de pano eram tão raros que estavam na lista de desejo dos agentes imobiliários. Num deles, o provocante imperativo rodeado de falsos litóides: “EAT ME!”
“Você foi nossa hóspede durante umas semanas, não foi?”.
“Eu sei que você já ouviu isso mais vezes do que sua mãe te beijou antes de dormir, mas eu era inocente”.
“Não diga isso para mim. Não tenho nada contra prostituição. Mas não sou eu que faço as leis, boneca”.
“Prostituição é uma palavra meio forte, não acha?”
“Pindamonhangaba é uma palavra forte”.
“Não, detetive. Essa é uma palavra longa. Me foda é uma palavra forte”.
“Não. Aí são duas palavras”.
“O fato é que está usando palavras demais, não acha?”
O fato é que Rocky Ombro precisava descobrir algumas coisas antes de substituir a conversa pela ação.
“Recebi essa mensagem pela internet. Te diz alguma coisa?”
Um tanto decepcionada pela aparente falta de interesse do detetive, que escondia o jogo atrás da capa bem amarrada na frente do pélvis, Sindy tomou o papel nas mãos – “findi td dibom!!! skenta aki em kza” - e comeu mais um naco de Nuggets Empalados antes de responder.
“Pode ter sido eu. Escrevo essas coisas para me divertir com os amigos”.
“Não brinque comigo, garota. Você pode se meter numa encrenca daquelas”.
“Estou tentando te levar para uma encrenca daquelas desde que chegou aqui”.
Rocky Ombro percebeu que precisaria se esforçar mais para arrancar alguma coisa.
“Tem gasosa de framboesa na sua casa?”
**
A voz quase não saía: “Mandei a mensagem de uma lan house. Tô sem computador em casa”.
“Como vou ter certeza de que foi você?”.
“Ocupe essa boca que depois eu te recompenso”, e puxou contra si o cicatrizado couro cabeludo de Rocky Ombro.
O tempo passava a galope naquela noite quente em Romeniatown.
“Me diga... aí, aí, isso, isso... pelo menos o no... ôôôôuuu... o nome da lan houzzziiiiiiiiiiiiiii!”
Quarenta minutos depois, a exausta Sindy praticamente desmaiava no lençol do Bob Esponja. Antes de cair no sono, recompensou o esforço do dedicado detetive: “Comodoro da Ala Sinistra”, sussurrou enquanto relaxava os braços em volta do travesseiro do Lula Molusco.
Quando acordou, na manhã seguinte, Sindy encontrou apenas algumas moedas e clipes no criado mudo. Havia falado durante o sono e ninguém nunca vai saber se Rocky Ombro ouviu ela confessar que fez um acordo com o tenente Lopez para reduzir a estadia forçada na cadeia.
Ombro esperou o McDrakula abrir, pegou Elizabete e foi para casa. Nem precisava mais ir à lan house Comodoro, na parte sinistra de Romeniatown. Algumas vezes as intrigas são sobre morte e seqüestro. Dessa vez eram sobre a lei municipal que exige 2% de funcionários dependentes de bolhas e uma mulher solitária cujo esporte favorito é cometer erros com policiais. "E daí?", filosofou o filho adotivo de Dona Neli.

No próximo episódio: Xana contrata uma empresa que faz monografias pela internet para incluir um artigo no livro do 77o DP. Mas não será um simples caso de plágio para Rocky Ombro. Não perca: “Mandem Peter Folk para o além. Lá todos são loucos!”

quinta-feira, agosto 03, 2006

O AVATAR # 7! No fast food do Mal, o especial do dia é... seqüestro!

Episódio de hoje: “O Comodoro da Ala Sinistra – parte 1”


Rocky Ombro recebeu uma mensagem estranha pela internet, muito mais confusa que
as indecifráveis frases de Elizabete na parede da bolha. Dizia “findi td
dibom!!! skenta aki em kza” entre carinhas redondas sorridentes. O remetente era
alguém que assinava símbolos gráficos. Vamos chamá-la de “Srta. Asterisco”. A
velha sensação espiritual correu pela espinha d’O AVATAR quando leu o email.
Sim, aquilo era um desesperado pedido de socorro. A srta. Asterisco corria
perigo.

A situação era preocupante. Em primeiro lugar, nitidamente Asterisco precisava de um psicólogo. A mensagem não deixava dúvidas: ela estava sob terrível pressão. “Tenho medo que ela faça alguma besteira”. Mas onde?
“Que aparelho é esse, Cassius?”
“É um Rastreador-Grampeador-Canivete última geração, detetive. Com um pouco de paciência, essa belezinha consegue descobrir a origem dos e-mails”.
“O departamento resolveu abrir o cofre, hein?”
“Na verdade, ele apenas rastreia e-mails... Aqui está: a autoria da mensagem”.
miga_ju_fofis@absentmind.com
“Tem certeza de que não estamos lidando com alguma organização ou algo assim?”
“O rastreador diz que se trata de pessoa física, tenente”. Ombro ouviu a última frase com atenção. Isso descartava o “outro lado”. Ele sabe que no além as pessoas não são físicas.
“Teu brinquedo consegue descobrir o computador de onde saiu a mensagem?”
Cassius riu. “Ora tenente, isso já é ficção científica!”
Como Rocky Ombro previa. Mas ele tinha outros métodos para conseguir essa informação.
hh
Dona Neli faz massagens relaxantes, lê a sorte nas mãos e nas cartas. Ela comprou vários livros que ensinam as práticas de vidência, mas ficou com preguiça de ler um por um. Então, confiando na sua “vocação”, desenvolveu um método revolucionário.
“Vejo um homem na sua vida”.
“Em que carta?”
“Em todas”.
“Ah, então é aí que eles se esconderam!”
O interfone tocou e Dona Neli precisou deixar a mesa por uns instantes.
“Isso não quebra a corrente?”, preocupou-se a cliente.
“Não se preocupe, acendi uma defumação para fortalecimento das amarras. Especialmente para você”.
Madame Neli levantou o fone no meio do sinal de chamada.
“Ombro”, disse o interlocutor.
“Desculpe, mas só faço massagens na terça”.
“Rocky Ombro, mamãe”.
O detetive esperou cinco minutos para ser atendido. Dona Neli precisou terminar a sessão – alegou que não era conveniente deixar o espírito da Cigana Escrava esperando.
“As cartas dizem que você precisa tomar um banho de descarga com a erva churumaco do palanque sagrado”.
“Pra quê?”
"Vá. É melhor ir antes que anoiteça. O banho só tem efeito antes do Guatupé Roxo cantar”.
“Onde eu acho isso?”
“Numa loja que venda passarinhos”.
“Mas as agropecuárias fecham às seis”.
“Viu? Por isso deve ser feito antes das seis”.
“Você quer que eu tome banho de palanque na agropecuária?”
“A Cigana Escrava está me soprando no ouvido. Tem que ser assim. Senão seu homem não virá”.
“Pelada numa loja que vende ração pra galinha: com certeza vai encher de homem!”
Dona Neli disse então que precisava se recolher para liberar a Cigana Escrava. Ela colocou a mão nas costas, enrouqueceu a voz, se apoiou em uma estátua do Mago Gandalf e concluiu:
“Af, af, nega véia precisa vortá pras lida da otra dimensão, ajudá os gnomo e o véio Noel”. E mancou ora de uma perna, ora de outra até o banheiro.
Rocky Ombro, um homem cuja honestidade era abrangente como a camada de ozônio, segurou a cliente pelo braço.
“Ei, não vê que isso é uma farsa? Minha mãe está inventando!”
A mulher deu de ombros.
“E daí?”
Três minutos depois, a vidente massagista volta à sala; “Ela já foi? Não sei por quê, mas não confio muito naquela mulher”.
“Mamãe, eu preciso de sua ajuda. Sem truques”.
“Rá, vá pedir ajuda para aqueles veadinhos da tal perícia científica”.
“Você sabe que a ciência não resolve tudo, mamãe! Lembra quando eu tive vermes?”
“Diga o que você quer e talvez, se eu tiver um tempo, eu te ajude... mas não faça essa cara de vitorioso. Essa é a última vez, entendeu? A última!”
“Você é a melhor, mamãe! Eu gostaria de saber de qual computador veio a seguinte mensagem”, e mostra um papel com a transcrição. “Foi assinada obviamente com um codinome: miga_ju_fofis@absentminds.com
“Hmm. É um nome muito estranho. Preciso consultar meu livro de entidades”.
Ela vai até uma caixa de sapatos de palhaço, encima do guarda-roupa, e de lá tira vários panfletos de desconto em farmácias, a revista Zongo, a auto-biografia psicografada por Valêncio Xavier antes de falecer e o Livro Sagrado de São Bisonho para Entidades Proibidas e RPG, uma edição esgotada e perseguida pelo síndico supersticioso de um prédio na zona sul da cidade.
“Vamos lá: Conxuciferus... Contadores... Comodoro da Ala Sinistra... Achei: Com!”
Como de costume, Ombro tinha escolhido o ponto de partida certo!
“Com: Depois que Gelson Mendigo expulsou Indiomar da Ala Nobre do Castelo das Sombras, a Espada Cantante da Sabedoria Média caiu sobre a consciência de Celoí: esta a entregou para Comoeque, que passou a se chamar Com, para facilitar na lista telefônica”.
“Interessante. Mas não sei o que fazer com essa informação!”
Dona Neli se aproximou e olhou O AVATAR nos olhos:
“Vai saber. Ouça sua consciência. É o que vem fazendo desde que achei você naquela caixa de sapatos de palhaço, boiando no esgoto lá nos fundos”.
“É... já se foram três anos desde então, mamãe”.
“Puxa, o tempo demora tanto pra passar... que inferno”.
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Na volta para casa, com o cheiro nostálgico do outono se acomodando no horizonte, Ombro atravessou o sinal fechado duas vezes. Como dirige uma ambulância mal reformada, os carros deixavam-no seguir sem buzinar. Tentava juntar os cacos daquela história misteriosa.
Na única esquina que parou, encantado com uma menina que fazia malabarismo com UMA laranja, percebeu um letreiro em neon e seu astuto cérebro fez ding! “Como a Elizabete diz quando está agitada: ORROCOS!”
Era uma “balada”, mas não como "Love Hurts" ou uma canção do Brian Adams. Balada é uma boate rebatizada para não ser confundida com estabelecimento onde homens tentam usar dinheiro para transar com garotas e garotos vestidos jovialmente. Adolescentes muito maquiadas e seus namorados impregnados de quantidade tóxica de gel formavam uma fila na calçada. Pulavam no mesmo lugar e esfregavam os braços. “Será uma gincana?”, cogitou o detetive. O mais surpreendente, no entanto, era outra coisa:
O nome da balada era COMOéQUEé. “Mamãe tinha razão. A verdade apareceria para mim!”
Rocky Ombro vestiu o sobretudo amassado que herdara de Peter Folk, entrou na fila e até viu um conhecido dirigindo bem devagar ao longo da quadra. “Ei, Rocky! O que tá fazendo aí, seu pedófilo?” O AVATAR não poderia responder na frente de todo mundo nem chamar muito a atenção. “Vim encontrar a Elizabete. A danadinha adora um arrasta-pé”. E rebolou com uma mão no ventre e outra sobre a cabeça, estalando os dedos. O colega pensou na cena e perguntou onde a garota encarcerada na bolha estaria naquele momento. “Está vindo de ônibus. Tô guardando lugar na fila!”
Três horas depois, Ombro conseguiu entrar. Procurou o bar, o endereço da vida em que a verdade vem chacoalhada numa coqueteleira. Ei, ele conhece o garçom!
“Geraldino!”.
Depois de ser despedido da polícia supostamente por causa da numerologia, o experiente detetive, conhecido no passado como o Shaft de Romeniatown, passou por três empregos. “Dei muito azar, Ombro. No primeiro, disseram que não se fabricava mais uniforme do meu tamanho. No segundo, alegaram que eu sofria um encosto espiritual e no terceiro porque meu nome não rimava com o do chefe”.
Ombro não tinha estômago para manter uma mentira antiga. “Lopez não te despediu por causa dos números”. Geraldino parou de enxugar o balcão, como estava fazendo havia trinta minutos, e sua pele negra ficou pálida com a raiva que se avolumava no coração. “Na verdade, fizeram um SIASPR – Sistema Interno de Avaliação da Satisfação dos Presos Remediados – e os detentos reclamaram que você cozinha muito mal”.
“Eu não sei cozinhar. Foi o tenente Lopez que me colocou na cozinha para economizar! Além do mais, ele jurou que o SIASPR jamais cortaria a cabeça de alguém”.
Enquanto conversam, Cliceu Eduardo Alcântara Albuquerque Júnior, o dono do estabelecimento, chega esbaforido: “Ei, porque você não disse a raça aqui no formulário de emprego? Está insinuando que teríamos problemas em contratá-lo? Acha que somos algum tipo de árabe ou algo assim? Sinto muito, mas não precisamos mais de seus serviços”.
“Mas por quê? Eu preparo coquetéis, sirvo as mesas, estaciono os carros, faço vigilância e ainda ganho menos que a garçonete”.
“Você deve ter problemas psicológicos. Mania de perseguição. Não gostamos de gente assim por aqui. Atrapalha a harmonia do ambiente”.
“O que está havendo?”, perguntou Ombro, prejudicado pelo som do banda Thalia Cover e por uma briga entre dois freqüentadores que saíram para dançar com a mesma roupa.
“Eu vou buscar minhas coisas”, saiu desanimado Geraldino, pra quem a vida ia de mal a pior: até foi expulso do Clube dos Hemofílicos (“alegaram falta de condicionamento físico”).
O empresário esperou um segundo e confidenciou para Rocky: “Sabe o que é isso? Falta de uma boa orientação. É o que digo: a fruta não cai longe do pé. Você acha que esse aí tem bons exemplos em casa?”
Soa um ringtone do cantor Latino.
“É o meu... Oi, papai. Claro, 10h30. Eu levo a ceva! Te amo, paizão”.
Ombro bebericava a única e cara água de esgoto que serviam na espelunca.
“Veja, é o que eu digo: harmonia familiar. Hoje eu e papai vamos apostar numa rinha. Muitos homens tão aí, zoneando na rua bem longe da família. Papai não: sempre me leva. Família é a base de tudo”. E saiu, puxando o queixo para trás na esperança de evitar um arroto.
Nesse momento, Rocky Ombro correu os olhos pelo balcão e percebeu um brilho sob o pano que Geraldino havia deixado. Olhou para os lados e rapidamente embolsou o objeto. No banheiro, conferiu a “dica” que o ex-companheiro da polícia legara. Era um chaveiro com a letra G e uma única chave. “G? G...ah!” Cruzou com a garçonete peituda duas vezes melhor remunerada que o Shaft de Romeniatown: “Ei, boneca, sabe me dizer como chego à garagem?”, e colocou uma nota de R$ 2,00 novinha no decote da loira de sobrancelhas castanhas.
O AVATAR desceu furtivamente as escadas que levavam ao pátio dos carros. A noite estava saindo cara, pois precisou deixar R$ 0,65 em gorjetas para o flanelinha permitir alguns “testes”. Na oitava tentativa, um chevette marrom 1978 cedeu. Era aquele carro. Agora precisava descobrir uma pista qualquer. Não foi preciso procurar muito: no banco traseiro, um panfleto indicava o restaurante McDrakula.
Comida típica romena, dizia o pequeno cardápio.
“Romeniatown!”.
pp
No caminho, usando o automóvel indicado pelo ex-parceiro (“uma vez policial, sempre policial”, pensou com satisfação), Rocky Ombro recebe uma ligação do próprio Geraldino.
“Cara, me ajuda. Roubaram meu carro. Esqueci minha chave no balcão e não tenho coragem de recorrer ao Lopez”.
“Relaxe, colega. Agora eu não posso. Estou numa missão, lembra? Engula esse orgulho e fale com o tenente. Quem sabe não é hora de uma reconciliação?”
“Mas...”
“É melhor não conversar por essa linha. De qualquer forma, muito obrigado por ter armado o lance para mim!” E desligou, temendo os sofisticados equipamentos de rastreamento usados pela máfia romena.
Ali estava, passando o portal: Romeniatown. Ah, como Rocky odiava aquela parte assombrada da cidade. A horrível arquitetura dos restaurantes, imitando castelos da Transilvânia. Quando passava por um grupo de turistas posando ao lado de cemitérios temáticos, sentia vontade de vomitar.
É óbvio que existem motivos mais fortes para tanto rancor.
E eles precisavam aparecer logo agora?
Um boneco eletrônico dentuço havia emperrado na entrada do McDrákula. Emitia sem parar o velho riso sarcástico. Ombro se sentia como se fosse obrigado a assistir Kiss contra o Fantasma da Montanha Russa cem vezes seguidas.
A porta se fechou às costas d’O AVATAR e seus olhos petrificaram. Atrás do balcão estava a mulher que mais intrigou o detetive durante toda a vida. Aquela cujo mistério da existência desafia tanto sua paranormalidade quanto seu impressionante conhecimento de técnicas forenses.
“Elizabete?!”
“IAPAP IO!”, ela escreveu na bolha amarrada a uma capa negra com forro vermelho.
“Por São Bisonho!”, pensou Ombro, “o que fizeram com minha filha? Ela está falando romeno!”

(continua)

Na continuação: Elizabete, visivelmente hipnotizada, parece entoar uma oração satânica: “?MU OREMÙN O ATIECA”. Rocky Ombro tem uma suspeita: “minha filha e a srta. Asterisco seriam a mesma pessoa”? Um alçapão leva a uma entidade até então tida como lenda. Não perca: “O Comodoro da Ala Sinistra – parte 2”

terça-feira, agosto 01, 2006

O AVATAR # 6! Rocky Ombro mostra a que veio nessa continuação improvável

Episódio de hoje: “Em que parte do esquema entra... o crime? – parte 2”.


A passos lentos, o detetive Rocky Ombro atravessou a sala da delegacia onde,
minutos antes, o exemplar policial Peter Folk havia sido morto por uma
zarabatana envenenada. Uma voz misteriosa do além tinha lhe dado a dica de que
algo ruim, muito ruim mancharia a tarde na 77a DP. Pena que o trânsito
insuportável das 14 horas impediu O AVATAR de evitar o assassinato e uma
cacofonia.

Rocky Ombro iniciou os procedimentos: “Vamos ver o que Peter nos diz”.
“Receio que ele esteja morto, detetive”, adiantou-se Cássio.
“Eu sei, mas na polícia aprendemos a ‘perguntar’ coisas para os corpos”
“Pode ser, mas acho que ele não vai responder”.
Ombro se abaixou e tocou a inflamação deixada pela flecha no pescoço do defunto:
“Tenente, há algum índio no departamento?”
“Só se estiver disfarçado”.
“Então mande verificar os móveis e as costas do grupo de corcundas que prendemos ontem”. Ombro lembrou-se da época que serviu na reserva de Mangueirinha. Alguns índios são capazes de se confundir com cestas de vime. Transformar-se num sofá ou num calombo não seria passo muito difícil. A cada ano, a nova geração de índios torna a anterior completamente obsoleta.
Hernandez Lopez esticou uma cartolina na mesa e com um pincel atômico azul desenhou um esquema. No campo POTENCIAL escreveu “muitos policiais envolvidos = + chance de dar certo”. No espaço DESAFIO, redigiu “achar assassino, capturar índios, obrigar o chefe dos corcundas a falar, otimizar gastos, comprar produtos de limpeza e cobrar assinatura no livro-ponto”.
“O senhor desconfia de alguém, detetive Ombro?”, perguntou Xana, disposta a levar a farsa até o fim.
“O Senhor não desconfia, o Senhor sabe”, respondeu O AVATAR sem desviar os olhos do cadáver. “Quanto a mim, não tenho maiores suspeitas. A senhora tem, dona Xana?”, e finalmente ergueu a cabeça na mulher, olhando-a no fundo dos olhos, “Ou seria melhor dizer dona Maria Aparecida dos Santos?”
Xana tomou um susto tão grande que quase ficou molhada de medo.
“C-com-como sabe disso?”
“Como não é importante. Por quê é a pergunta correta”.
Xana Aparecida se sentiu exposta. Deu as costas para Ombro, acendeu, trêmula, um cigarro de cravo, usufruiu uma longa baforada para recuperar a calma (“o que o pastor Lambança faria?”)e resolveu levar a atenção dos ouvintes para outra direção:
“Quando me converti à verdadeira igreja de Cristo, resolvi me livrar de todo o passado católico”, interrompeu a fala para cuspir na escarradeira de Lopez, “E não havia nome pior para minha nova fé do que Maria Aparecida dos Santos”.
“Pelo menos sua mãe não era fanática pela vovó Donalda”, lamentou Colimério ao lembrar do seu irmão, Gansolino - interferência que lhe valeu um tapa de advertência na nuca, dado pelo tenente Lopez.
Xana prosseguiu: “Eu percebi que quase todos os nomes eram usados pelos porcos católicos e suas estátuas demoníacas. Pensei em me chamar Bisonha, mas descobri que até o santo padroeiro da cidade tem esse nome”.
“Assinar Xana te pareceu bom, então?”.
“Tão bom como qualquer outro. Pelo menos você não vai encontrar uma freira chamada Xana”.
Certo, certo. Rocky Ombro agradeceu a todos e disse que iria se recolher. “Elizabete está gripada e isso afeta muito a cabeça dela, sabe? Hoje de manhã a pobrezinha escreveu uma coisa tão sem sentido no catarro! Bem, o fato é que preciso dar uma olhada e um beijinho de boa noite na bolha”.
Os funcionários começaram a arrumar a bagunça; Cássius e Linus já tentavam abrir algum orifício de Folk para a perícia científica. Foi quando Rocky Ombro parou na porta, colocou a mão na altura do queixo, e disse:
“Só mais uma coisa, sra. Maria Aparecida”.
“Xana, por favor.”
“Srta. Gavirova, pode ajudar nossa colega?” E apontou para a pena de avestruz que grudara em seu brinco. “Só mais uma única coisinha, dona... Xana. Uma coisinha que não entendi direito. Eu não sou muito rápido, sabe? Minha filha Elizabete sempre diz algo como UAHCT quando me despeço. Tenho a impressão que significa ‘tome cuidado, trapalhão’. Ela sabe o pai que tem: um homem muito lento...”
“Pode ir direto ao ponto, detetive?”
“Vou direto ao ponto, Xana. Por que nunca contou de seu envolvimento com Peter Folk na época que era casada com o tenente Lopez?”
Maria Aparecida começou a recuar, com os olhos arregalados, praguejando de forma incompreensível.
Hernandez Lopez desabou sentado, desafortunadamente na escarradeira: “O que significa isso? Diga que é mentira, meu amor!”
“E o mais importante”, as palavras de Ombro eram como uma nova zarabatana disparando verdades envenenadas no coração da policial, “Como pode uma mulher tão recatada, que se recusava a engolir depois de fazer sexo oral em Folk, conseguir esconder uma arma indígena no meio das pernas?”
Lopez soluçava: “Não engolia? Em mim ela nem fazia!” Xana girava a cabeça como uma doida varrida. O AVATAR tirou as algemas do bolso e começou a caminhar na direção da assassina.
“Eu não daria mais nenhum passo, detetive. Ninguém vai prender a mulher que me tirou do lado negro da força e me mostrou Jesus”, gritou Colimério. Na sua calejada e cabeluda mão esquerda havia uma estranha arma azul que parecia de plástico. “Fique no seu lugar. Sei bem como usar um fêiser”.
Ombro pensou em usar o truque do Ardil Carbomite, mas decidiu por outra abordagem:
“Cuidado para que a arma não exploda no seu rosto, colega. Há um cisco na culatra”.
Para conferir se a advertência era verdadeira, Colimério aproximou a “arma” dos olhos e... grudou-a no nariz. “Socorro, esse homem tem pacto com Satã. Que truque diabólico é esse?”
O fêiser de Colimério era, na verdade, uma pistola de cola usada nas mesas de fórmica do escritório.
**
Detidos os dois evangélicos, a delegacia voltou a ficar segura. Linus, um jovem sempre disposto a aprender, se aproximou de Ombro: “Como sabia do caso entre Folk e Xana, detetive? Leu a mente deles?”
“Não, aprendiz. Você se espantaria com a quantidade de coisas que se descobre numa sauna”.
Linus deu uma gargalhada que ficou congelada na cena final.
Rocky Ombro colocou o paletó nas costas e fechou mentalmente a conta daquele caso: ”Obrigado, amigo do além. A pena de avestruz me mostrou que Xana era o índio disfarçado. Exatamente como você previu quando tomou forma no vapor da sauna!”

No próximo episódio: Um tal de Columbo é eleito o maior detetive de todos os tempos, o que leva Rocky Ombro a um retiro na distante cidade de Ponta Grossa. Lá ajudará os irmãos Elder a desvendar um esquema de desvio ilegal de estradas. Não perca: “Quem mexeu no meu itinerário?”.