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domingo, agosto 20, 2006

ALGO OU ALGUÉM # 1! O viaduto dos Neves

Eu sempre quis escrever histórias de visagens e mistérios arrepiantes, mas me
sinto intimidado pela aparente vantagem da tradição oral sobre a escrita nesse
tipo de relato. Fantasma é algo para descrever com recursos cênicos. Mas
sonhei essa noite com isso, talvez influenciado pela promessa de
pescar com meu pai. É um sinal e, ao contrário do personagem real do conto
seguinte, achei melhor não desprezar. Tenho um capítulo novo da Pimenta
Magnética e dois outros do Rocky Ombro para postar, mas fiquei com preguiça de
passar de um computador para outro. Nesse meio tempo, espero que
aproveite a primeira de uma série de histórias verdadeiras que
coleciono desde criança. Senão para se divertir, pelo menos como advertência.


O Viaduto dos Neves

A névoa é densa em praticamente todas as manhãs do ano. Lá pelas oito horas, como numa mágica, sem que percebamos direito, entretidos com o suave estalo da bóia sendo engolida pelo rio, a cerração vai embora e, quase sempre, o sol revela as cores vivas da água e das pedras, galhos e arbustos das margens do Tibagi.
Mas não são nem sete e a luz futura é um mistério. Pela experiência, ele sabe que daqui a pouco esse cinza sujo vai se substituir por névoa mais clara – e isso sempre cria o efeito de calor. O frio se vai e, se você estiver num dia de sorte, terá a mente totalmente empregada na acomodação dos lambaris no samburá. Sentirá um arrepio rápido e revigorante quando, em pé na proa, perceber o barco balançar e, no dobrar do joelho esquerdo, cogitar um banho na água turva.
A seqüência de pescarias triunfantes parece ter sido quebrada, no entanto. Ele está matutando que, adulto e estudado, não se livra do costume de observar os “sinais” completamente desprovidos de sensatez que norteiam as pescarias. Desta vez, sustentado por um inesperado orgulho cético, não deu ouvidos a pelo menos dois indícios de que o rio não estaria para peixes.
Desde que firmou o compromisso íntimo de pescar toda semana –depois de atropelar um carrinheiro, girar o automóvel 360 graus numa avenida movimentada e se deparar com um adesivo no vidro traseiro de um Fiat 147: “Tá nervoso? Vá pescar!” – é a segunda vez que vai para o rio fora da madrugada de sábado. Da outra, também aproveitando um feriado forçado por luto dos proprietários da firma, se arriscou numa quarta-feira. Voltou para uma mulher irritadíssima – o encanamento estourou, entrou ladrão, o pequeno quebrou o braço – e sem nenhum peixe, a cara cheia de mordida de pernilongo e constrangedor bafo de cachaça.
É terça-feira, o que dá certo incômodo. Mas, oras, ele não estudou quatorze anos de sua vida para se fiar somente na superstição. Aprendeu a fazer uma fria auto-análise: o sentimento de incômodo era a velha culpa cristã. Todo mundo trabalhando e você pescando em pleno meio da semana! Além do mais, um raio não cai duas vezes na mesma caiçara (mais um braço quebrado? Outros ladrões? A pia entupida?) e o excesso de bebida foi um desculpável acidente – ele abre a caixa de isopor e, como se estivesse provando para algum anjo de guarda, arrisca o dedo entre os cubos de gelo para confirmar as restantes três latinhas de Pepsi e uma de Choco Milk.
A bruma acinzentada parece se adensar. Um som pesado e repentino corta a atmosfera. Vem de cima, provocando curiosa desarmonia no cenário até então compacto. O barulho quebra o mantra peixe-água-bóia engolfada-memória-peixe-água-bóia engolfada-memória que configura o prazer verdadeiro que ele tem de lançar a linha e esperar a fisgada. É o som bruto de um caminhão vazio, chacoalhando a carroceria e quicando vez e outra as rodas suspensas. Ele olha para o alto e desenha mentalmente as placas de cimento no chão do viaduto estalando com o peso da jamanta.
Então o bote está sob o viaduto! O outro sinal, desprezado com certa insolência. Antes de sair, ontem à noite, ligou para o sogro. “Banho na minhoca?” O velho parecia animado, recuperou-se bem da pneumonia e precisava mais do que os dois braços amputados para recusar uma pescaria. “Vou experimentar a região do primeiro viaduto, perto da chácara dos Antunes”. Nesse ponto da conversa, o sogro diminuiu a altivez e passou a procurar desculpas. “Você diz... no viaduto das cruzes dos Neves?” Esse mesmo, pega a estradinha ruim e agüenta uns solavancos uma meia hora. Dá pra deixar o carro no descampado. Nessa época o bote desliza bem entre as pedras... “Agora eu lembrei! Tenho consulta amanhã cedo. A véia me mata se eu perder”. Bom, na hora ele pensou: o cara é sempre companheiro, deve ter trêta. De qualquer jeito, não é o fim do mundo – deu a deixa para que concluísse, satisfeito, que enfim tinha encontrado sua religião, seu momento íntimo de reflexão, numa combinação solitária de sua integração consigo mesmo e com a natureza. Pescaria. Pescar sozinho é o claustro requerido para limpar sua alma e renovar os votos.
Mas a divertida revelação mística foi repentinamente embora quando, exatamente às 3h47 da madrugada de segunda para terça, encontrou o ponto de referência da estradinha e ouviu os pneus se arrastarem no cascalho fronteiriço com o asfalto. As três cruzes, no fim do viaduto, ainda decoradas com as flores de plástico dois anos e meio depois do acidente. Contra a luz dos faróis, no torpor inescapável da noite silenciosa, a impressão é que os frágeis monumentos acompanham o viajante. Durante alguns segundos, parece que as cruzes avançam pela margem e se postam em frente ao carro, como se empurrassem o motorista para um determinado caminho, cercando seu destino.
Trabalhou durante anos como representante comercial entre Palmeira e Ponta Grossa; não poderia se intimidar com cruzes ao longo da estrada. Lembranças doloridas dos acidentes têm seu valor. Servem como as carcaças de aço e ferrugem exibidas em cada posto rodoviário: “ande devagar, senão...”
Mas as três cruzes acionaram outra memória, um fragmento capturado de uma conversa alheia, não sabe mais onde ou quando. Alguém dizia: “Não dá nem peixe no viaduto que os Neves desapareceram”.
O bote balança mais. Ele sente, às costas, que uma pedra, talvez, tenha acertado o casco. Mergulha os dedos na água escura e tateia a madeira cuidadosamente. Nenhum rombo desse lado. Então é por isso que ninguém vem pescar aqui? Com a mão direita, passa a examinar o outro lado. Retira a mão, limpa do galho, e retoma a superfície. É besteira, ninguém deixa de pescar porque dizem que tal lugar é assombrado ou coisa assim. Na névoa, nem se deu ao trabalho de virar-se para a proa: quase deitou de costas até alcançar a quilha anterior.
A palavra “assombrado”, no entanto, assaltou sua concentração e só pensaria em rombo se efetivamente o encontrasse. Recordou de outro momento, bem mais recente, que já havia sido arquivado na memória. Quando a alvorada deu cor à cerração, distraiu-se adivinhando as formas torpes desenhadas na paisagem ciliar. Contra o ar pesado, cada árvore, cada pedra, cada coisa parecia com outra – como as nuvens. Num rasgo da bruma, a araucária mais afastada lembra um martelo, do qual despenca um objeto curvo, que então plana e depois ganha o espaço por se tratar, na realidade, de um gavião-pombo. Vê um rosto de nariz pronunciado e sobrancelhas esdrúxulas, como num cartum, mas não deixa de perceber que é um marmeleiro. O punho irrompido da superfície é uma pedra. Nada disso se move, o que lhe decepciona um pouco, pois nunca viu, nas pescarias, uma capivara, jaguatirica ou outro bicho que justificasse sair contando. Uma paisagem terrestre completamente imóvel. Menos...
Menos aquelas duas manchas borradas na ponta do rio, a uns quinhentos metros da sombra do viaduto. Tentou criar uma forma original para aqueles vultos, mas não conseguiu definir o que eram "de verdade". Com o que pareciam, ele sabia. Com pessoas. Uma delas um pouco mais alta. Lado a lado, indicavam algum tipo de vigilância. Cansou do exercício de criatividade quando já se dedicava a preparar as iscas. Mas metros à frente, ao levantar a cabeça, percebeu de novo as imagens misteriosas em sua vigília. Não era um pessegueiro ou uma pedra ou um tronco. Não sabia o que era e, enfim, deixou para descobrir na volta, quando o sol a pino estraga o imponderável.
Um novo toque em algum ponto do casco. Foi um pouco mais forte, de modo que a contundência roubou-lhe os sentidos e, por isso, silenciou a mata, a madeira cortando o rio e o constante mergulhar da bóia de isopor. Ele só sentiu, pela primeira vez naquela manhã, o ar gelado invadir o corpo pelas frestas da roupa. Como se um dedo petrificado avançasse pelo colarinho e cruzasse a espinha espalhando o frio. Ainda assim, a nuca esquentou e as narinas foram tomadas por uma secura improvável, deixando a mente embotada. Desajeitado, mas vagarosamente, ele resolveu virar o corpo em direção aos fundos do bote.
Antes de examinar a proa, viu um brilho opaco despontando da água, uma quina metálica, enferrujada, que descia pela espuma provocada pelo agito repentino em esmalte e vidro quebrado.
Ele fixou os olhos na descoberta e, por impulso, continuou o movimento de virar-se para a traseira do barco.
Largou a vara para se apoiar, em choque, na borda. A voz saiu num soluço:
Quem é você?”
A mancha era escura e pequena, tristemente acomodada no canto.

5 Comments:

Blogger Alina said...

"Fôr" não tem acento há pelo menos trinta anos - hahahaha, é a minha vingança!

20/8/06 19:58  
Blogger Alina said...

Fora isso, parabéns pela produtividade, ainda vou arranjar tempo para ler tudo.
Beijo.

20/8/06 19:59  
Blogger Escritório de Gestão Integrada said...

Puxa, você tem razão. Ou melhor, Vossa Mercê bem merece nossa estima por mui prestimosa colaboração.

21/8/06 00:34  
Anonymous Anônimo said...

Preciso falar com você. Assunto periclitante...
Beijo
Flávia

12/9/06 12:15  
Blogger Escritório de Gestão Integrada said...

Ei, Flávia!
Me ligue. Mande email: vicfolken@yahoo.com.br
Beijo.

14/9/06 17:52  

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