AO PÓ!
Nos bons dias, as pessoas passam por ele, estirado na calçada, e jogam uma moeda grande, amarela, de 25 centavos, dentro de uma caixa esfolada de tênis Olympikus.
Nos dias ruins, que são mais freqüentes, os transeuntes olham de longe a canela em carne viva e osso esburacado, carcomida pela doença que ninguém arrisca batizar, e se amontoam na guia para evitar um contato ainda mais desagradável.
Nos dias piores, os mais remediados reclamam: "Não dá pra andar dois metros sem esbarrar num pedinte!" Essa senhora estava com os nervos à flor da pele e até se sentiria culpada, se lembrasse da cena mais tarde. O dia foi difícil: o primeiro avião atrasou e ela precisou ficar nove - juro pra vocês! - nove horas no aeroporto esperando a conexão.
É, a vida de Zé Canelinha foi uma desgraça.
Negro, doente e dono de olhos injetados de sangue, vítimas constantes do frio, do pó, da conjuntivite... mas quem se importa? "Olha a cara daquele ali! Encheu os pacová de pinga!" Não, diz a amiga dada a expert: "É maconha ou cola. Dá pra ver pelos dedos."
O pior, o pior mesmo, é nem sequer ter nome. "Zé Canelinha" pareceu melhor no dia que nosso amigo ouviu dois adolescentes falando bem de um tal de "Roque Ombro". Soava importante. Mesmo assim, o camarada deveria ter aquele apelido por causa de costas fortes, trapézio definido, figura de atleta. Definitivamente, não era seu caso. Se fosse, ficaria melhor Zé Canelão ou Zé-Canela-de-Ferro - embora esses dois, pelo menos na crônica esportiva, também representassem algo não lá muito positivo.
Mas isso estava para acabar e Zé Canelinha não conseguia esconder um certo entusiasmo.
Ele estava morrendo.
Sentia nas veias saltadas do braço, como se caroços se misturassem ao sangue e lentamente bloqueassem e depois apagassem os vasos, inutilizando-os ao ponto do esquecimento.
A garganta secava cada vez mais rápido e nenhuma água, nem quando era abundante açoite, tirava o gosto de poeira. A coisa se avolumava em sua traquéia, preenchendo as ramificações tão nitidamente que Zé Canelinha "via", como se olhasse o esquema de um fliperama, os caminhos outrora preenchidos de ar.
O pulmão se encolhia dia após dia. Os sentidos se embaralhavam.
Zé Canelinha não tinha forças para reagir.
Melhor: ele desistiu de reagir.
Entregando-se, primeiro com medo, depois com cuidado e, por fim, com inesperada alegria, o homem passou a esperar o dia em que fecharia os olhos como o despencar mudo de uma cortina de chumbo e só abriria para ver Nosso Senhor Jesus Cristo, leve feito pluma, levantar suas pálpebras num sopro.
Todas as vezes que foi tratado como nada, como invisível, por não ter documento nem nome, seriam segundos - menos! todas reunidas num milésimo de segundo! - na vida plena e esplêndida que lhe foi reservada na Eternidade.
Chegou.
No mesmo dia, ao anoitecer, o taxista do ponto na esquina resolveu espantar o cachorro que lambia o rosto desacordado. Estranhou a rígida imobilidade e cutucou Zé Canelinha com um galho. Depois chamou a polícia, pois não sabia bem de quem era a responsabilidade.
Não sabemos se o falecido tem noção de tempo, então isso pode parecer sem sentido: de qualquer modo, o corpo ficou guardado na geladeira do Instituto Médico Legal por um mês. É o prazo para que a família reclame o indigente. No caso dele, era como se fosse obrigado a esperar a próxima conexão por 720 horas.
Ninguém apareceu, como nós já esperávamos.
Na terça cinzenta que cobria o Cemitério Parque São Pedro, onde a prefeitura mantém mil covas stand-by para indigentes, o motorista do IML e os coveiros foram as testemunhas do enterro de Zé Canelinha, que agora se chamaria, pra todos os efeitos legais, 174628-Pinhais.
Ninguém estava triste nem feliz. Hamlet não apareceu de surpresa para fazer piadas sobre as caveiras, o chofer deu uma coçada na nádega esquerda e os coveiros ora saudavam, ora contestavam a "personalidade" do técnico Emerson Leão, que dispensou Carlito Tevez do Corinthians.
Ficou mais escuro, 174628-Pinhais! Só se destacam dois pedaços de dentes frontais, os únicos que sobraram, aliás. Parecem esboçar um sorriso. A libertação está muito próxima, nem teremos tempo para que o primeiro verme invasor seja recebido pelo morto; esse infelizinho não será o homenageado na dedicatória. Os vermes antigos já faziam um "trabalho entrópico", digamos assim, e o morto é do tipo que valoriza o pessoal da casa.
A luz começa a aparecer.
Está no céu, no hall de entrada para a Eternidade.
É lindo e inexplicável. As nuvens se avolumam ao longe e aos pés dança um azul profundo. 174628-Pinhais vê o portão, grande e imponente, guardado por um anjo de rosto delicado.
Há algo brilhante além da grade e a felicidade reverbera pelo ar. Só esse soprinho minguado já é mais do que 174628-Pinhais teve a vida toda. Tem direito de querer mais? Sim, ele conclui. Mais, sempre mais, por detrás do portão o mundo é o Rio de Janeiro sem violência ou pobreza e todas as pessoas falam frases do Chico Buarque até para as operações mais simples do dia-a-dia.
174629-Pinhais cumprimenta o anjo com um aceno de cabeça, toma fôlego preenchendo o que pode no seu diminuto e empoeirado pulmão, e dá um passo decidido, outro dolorido e torto em direção ao paraíso.
Na linha da porta, o anjo desce o braço, interrompendo a passada como se fosse uma cancela. Olha para o recém-chegado e pede:
"A identidade, por favor".