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domingo, setembro 10, 2006

ALGO OU ALGUÉM # 2! Cavalo na madrugada

A história a seguir eu escrevi há muitos anos, quando ainda morava em Ponta
Grossa - a cidade mais assombrada do mundo. Mudei pouca coisa nela para essa
versão e é possível que irrite os leitores por causa da técnica precaríssima.
Por algum motivo, no entanto, eu considero um bom argumento para curta-metragem. Como a anterior, é um caso real.



ff
Cavalo na madrugada

O prédio é alto o suficiente para avistar todos os outros. São muitos, de vários tamanhos, mas de textura quase uniforme, ainda mais de madrugada. Dá mesmo para ver todos, pois mesmo os pequenos que ficam atrás dos maiores deixam-se insinuar entre uma fresta e outra; até os mais discretos se mostram através dos reflexos provocados pelos pastilhamentos, pelos vidros, pelos alumínios que adornam as fachadas.
Enxergo tudo de norte a sul, já que temos janelas para os dois lados. Leste e oeste parecem dominados pelo campo, de uma perspectiva, e pelo mero prolongamento dos prédios visíveis, pela outra. Estamos no alto de uma cidade considerada “de médio porte”. Mas não há o esplendor da altura. A torre não é imponente, é mesmo provinciana, um tanto anônima na comunidade dos edifícios da cidade, incentivando-nos, deste ponto de vista, a aceitar a indistinta comunhão do concreto.
A noite morna de horizonte imóvel contribui para a sensação. É tudo parte de um organismo só, em cujas veias as pessoas dormem ou talvez circulam tão fugaz e rapidamente que sequer as enxergamos. Não há ninguém lá ou ali ou lá daquele lado. Podemos até ouvir os estalidos dos semáforos mais próximos, trocando o vermelho pelo verde, o verde pelo laranja, banhando o asfalto escuro de uma solitária cintilação de discoteca.
Afasto-me de esguelha, sentindo as costas vibrando pelo cansaço; sustento um pescoço rijo e febril. Deixo a janela o suficiente para perder seu leve latejar, mas ainda tenho em conta o púrpura do céu. Quero me apropriar do silêncio da madrugada, isolando o barulho eventual de motores, apitos ou do vento.
Os sons se dissipam por alguns instantes. Estou na cama, cercado de três ou quatro travesseiros, sobre uma colcha azul, com os olhos fixos no tremeluzir do relógio instalado no aparelho de som.
Ouço então um galope. Regular e ritmado, dono de uma massa sonora quase colorida. É tão tão hiper-realista, um verdadeiro estereótipo do som de um galope. Dou um salto e volto à janela. Olho ansioso para todas as ruas que se desenham sob meu parapeito. Repito o rastreamento, metodica e pacientemente, percorrendo superfície por superfície entre as colunas dos prédios. Apenas o som da tropeada, ora mais vivo, ora mais distante.
Corro até a janela oposta, no quarto vazio depois do corredor. Busco as sombras entre as casas, estico meu corpo e aperto as pálpebras para tentar ver a fresta no edifício cinza. Nada. Concentrando-me no som dos cascos, deixo-me levar de novo para o outro lado do apartamento. À direita da janela, um vulto esguio acompanha o galope. Corro de uma extremidade a outra tentando ver o animal, hipnotizado pelo repique dos ungulados no asfalto. O cavalo parece circundar o prédio.
O intervalo entre os passos aumenta. Poderia até contar as quatro pernas se alternando na rua, simulando uma espécie de balé; o silêncio interrompido por crepitações demarcadas, irregulares a esta altura.
À medida que o trote se avoluma, o coração espanca. Minha atenção minuciosa faz acreditar que os passos se sucedem uns ao lado dos outros; o animal dá pequenos saltos laterais, ou volta de costas, em disparadas mais rápidas, interrompidas abruptamente.
De repente, o galope volta à forma original, suntuoso e regular. Estou com a face colada ao vidro. O som dos cascos passa a ecoar e vibrar pela estrutura interna do meu prédio. Parece que ele entrou. Sinto-o atravessando o saguão, uma dezena de andares abaixo. O tropel, estalido reverberado pelas paredes, se expande até me atordoar.

Saio do quarto e tomo o corredor em direção à sala principal. Paro alguns segundos para ver minha palidez refletida na fotografia emoldurada. Sigo até a entrada do apartamento. À esquerda, enviesado no meio do tapete, um cavalo de olhos escuros e opacos, de pelagem avermelhada, olha imóvel para o canto de onde saio.

2 Comments:

Blogger Osny Tavares said...

Não é porque você falou, mas lendo este texto fica perceptível a idade do autor: descrições bucólicas de ambiente, ação figurativa, certo desprezo pelo tempo cronológico. Muito bem escrito, entretanto, exceto as partes que não estão.

12/9/06 17:53  
Blogger Unknown said...

Caraca esse texto foi publicado 5 dias antes de eu nascer

6/5/21 20:00  

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