CINCO DOS MELHORES DISCOS DE JAZZ!
Eles não são de Coltrane, Miles, Ellington, Mingus ou Monk, mas não há razão
para negar-lhes status de grandes obras-primas do jazz.
Todas as
minguadas vezes que se materializam matérias sobre o gênero nas páginas
“culturais” dos jornais impressos, o clichê parece obrigatório: como os
jornalistas raramente entendem mais de jazz do que lêem nos verbetes dos guias ou releases
das gravadoras, a gente é obrigada a ler pela milionésima vez que “A Love
Supreme dividiu águas” ou que “Kind of Blue botou Miles Davis no mapa da
música”.
Por isso fiquei com vontade de indicar cinco discos de jazz que
normalmente não entram na lista de favoritos dos críticos de música, mas são merecedores de lugar cativo no panteão das melhores gravações de todos os tempos,
bem ao lado de Milestones, Giant Steps, Brillant Corners, Mingus Ah-Um
ou Ellington Uptown.
Vou dizer com todas as letras: a seguir, cinco dos
melhores discos de todos os tempos.
LOVE REMAINS
Gravadora Red, 1986.
O disco é do saxofonista-alto Bobby Watson, que debutou em grupos exclusivos de sopro e apareceu na mídia ao integrar o Jazz Messengers de Art Blakey. Eu arrumei quase todos os discos de Watson e juro para você que nunca testemunhei uma gravação ruim do sujeito. A última, que ando ouvindo alucinadamente no carro, é um show do trio encabeçado pelo guitarrista Jimmy Bruno no clube Birdland. Watson é convidado e só não rouba a atenção porque Bruno é um bopper realmente impressionante. Mas os solos de saxofone... meu Deus, que coisa!
"Love Remains" é uma canção simpática, daquele tipo fácil de grudar no ouvido (especialmente a versão cantada, ainda mais por Kevin Mahogany). A interpretação que dá nome ao disco – que considero a masterpiece de Bobby Watson – é um triunfo da música popular. O crescendo deslumbrante, a intervenção cristalina do baixo (Curtis Lundy) e o acompanhamento primoroso de John Hicks ao piano (ambos, baixista e pianista, estrelas de outra obra-prima: Audience with Betty Carter), sem contar os ataques ora suaves, ora violentos de Marvin Smith no tarol e nos pratos... o altíssimo nível se mantém nas seis faixas, mas eu gostaria de ter uma emissora de rádio só para transmitir “Dark Days” ao mundo – é difícil você não se apaixonar pelo sax alto depois de ouvir as chaves do instrumentos estalando entre as notas do tema.
MUSIC FOR LARGE AND SMALL ENSEMBLES
Gravadora ECM, 1990.
O líder dessa sessão hipnótica é o trompetista Kenny Wheeler, uma das estrelas da ECM, gravadora européia que, entre outras coisas, popularizou Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos entre os ouvintes de jazz.
O título não é uma metáfora. Trata-se de uma partitura que exige, no início, um grupo de vinte músicos e, ao longo da peça, vai se moldando a septetos, quintetos, trios, duos e, finalmente, solos.
É um disco conceitual, mas a qualidade transgressora não se mostra na superfície. Ele pode até mesmo soar cool como aquelas gravações de Miles Davis com a orquestra de Gil Evans; um ouvinte desatento atribuirá uma certa aura “leve demais” aos primeiros movimentos. Mas espere! Todo o disco é um tecido meticulosamente tramado, e o fio que conduz a manufatura, até a metade da obra, precisa de peculiar concentração: é a voz de Norma Winstone, tratada como instrumento de sopro, um aparelho que soa algo entre flugelhorn e trompa.
Daí vem o tom hipnótico de que falei ali no início.
Talvez tenha a ver comigo, com algo bem particular. Durante anos ouvi um vinil riscado da orquestra de Gustav Bröm, da Basf, com capa imitando um vitral de igreja sobre fundo preto: Missa Jazz. Nunca achei versão em CD para curtir no carro ou em MP3, até que meu aluno, o Luís, detentor da tecnologia mutante dos softwares, transformou seu próprio exemplar do disco em arquivo digital. Ouvindo-o hoje, absorvo o calor dos graves, o tom colorido, mas meio enevoado, uma delicada passagem dos arcos para os metais... um mistério transportado em som, talvez por acaso, naquela gravação polonesa-alemã. Music for Large and Small Ensembles claramente não é um acidente. Wheeler capturou a atmosfera densa e sonhadora de outras experiências, mas costurou-a com música contemporânea e experimental.
LENOX AVENUE BREAKDOWN
Koch, 1979.
Quem não ouve jazz com freqüência naturalmente se choca com free. É como se aproximar de uma pintura de Jackson Pollock, pela primeira vez, sem nunca ter refletido sobre o sentido do realismo na arte. Assim como as pessoas dizem que “até meu sobrinho de três anos pinta essas manchas”, podem argumentar que os sons que saem do sax terminal de John Coltrane ou as notas marteladas de Cecil Taylor não passam de “urros, balidos, grunhidos e socos” ministrados por picaretas ou toxicômanos (não que a segunda hipótese seja totalmente desprovida de perspicácia).
Por isso eu não sei se o amor que sinto por esse disco do saxofonista Arthur Blythe contamina as pessoas a quem o indico. Eu tenho a impressão que 1979 é argumento fundamental contra aqueles que acreditam na obsolescência daquela década. 79 foi o ano de Audience with Betty Carter. Mais! Foi o ano de Lenox Avenue Breakdown.
Meu amigo Sílvio Fernandes sempre sacava os discos da Pablo e do produtor Creed Taylor para falar mal dos setentistas. Aquelas coletâneas com Zoot Sims e Toots Thielerman em Montreaux. Senhor! Era dose, mesmo.
Mas essa gravação de Blythe tem a coragem progressista dos jovens músicos de free jazz e um encanto latino inegável. Já nas primeiras notas da abertura, “Down San Diego Way” ouvimos o baixo agressivo, os pratos sibilantes e... cuícas! Apitos de escola de samba! Reco-reco! Você pensa: “não, por favor, nada de exotismo ianque com a minha cultura” e lembra do subversivo samba-enredo que deu o primeiro título à Beija-Flor de Lilópolis: “Sonhar com filharada dá o coelhinho/ com gente teimosa, na cabeça dá burrinho/ Chegou um rapaz todo enfeitado/ O resultado, pessoal, é pavão ou é veado”.
Mas não se trata disso. Não mesmo. É grande world music (apesar da chatice que é o rótulo) em que todas as nuances servem ao improviso. E o diálogo não é simplesmente entre culturas. É com o tempo. Como nas primitivas formações dixieland, temos um tubista ora marcando o passo, ora insinuando idéias. James Newton impõe a flauta no grupo como uma linha de falsa suavidade, contrapondo, como numa peça barroca, os improvisos violentos de Blythe.
Para citar o Sílvio novamente, jazz precisa ter swing. Às vezes é um tipo muito sofisticado de swing, quase inalcançável pelo corpo tenso do ouvinte. Mas aqui, não importam os gritos lancinantes dos instrumentos, sua circulação se adapta, o coração muda a batida e você dança.
MOTION
Verve, 1961.
Nunca fui um fã especial daqueles artistas que se agruparam aos pés de Lennie Tristano. Nem fui picado pela atmosfera de doce sofrimento cantada por alguns artistas de cool jazz, como Chet Baker – dele, quase me farto com as sessões do Gerry Mulligan’s Pianoless Quartet.
Adoro a música da Costa Oeste, mas prefiro o animadíssimo mainstream de Shelly Manne às gravações solo de Paul Desmond, cheias de lirismo classe-média.
Dito isso, uma contradição. Poucas obras são mais cool do que esse disco de Lee Konitz, talvez o mais Tristano de todos os Tristanos. Konitz ganhou admiradores pelo som bemolado de seu sax alto, algo entre melancólico e feminino, com notas espaçadas e construções incompletas. Bem mais que Stan Getz, que várias vezes se jogou em cascatas de notas, e muito mais cheio de progesterona que Lester Young, o pai da tonalidade erótica-depressiva entre os sopradores de paletas.
Numa famosa entrevista, Konitz, corado pela pele branquíssima e talvez alguns goles, respondeu com franqueza desconcertante porque não imitava Charlie Parker na época em que todos os saxofonistas estudavam horas a fio para se aproximar de Bird. “Alguns acham que eu descobri meu próprio estilo, mas eu não imitava Charlie Parker simplesmente porque eu não conseguia”.
Motion é, óbvio, um desmentido à exagerada humildade de Lee Konitz. Com uma qualidade que sempre gosto de ressaltar: é altamente técnico, um tour de force, mas pouca gente lembra disso depois de ouví-lo. Lembramos da música, tocada com fogo e sentimento, numa demonstração exemplar do trabalho em grupo no jazz. Trata-se de um trio, com o baixista Sonny Dallas e o impressionante Elvin Jones na bateria – o homem multi-rítmico dos discos mais célebres de John Coltrane.
Talvez seja a diversidade que produza tanta felicidade. São três músicos de temperamentos bem distintos e colocar Konitz e Elvin na mesma equipe é como articular o Juninho da época do Middlesbrow com o atacante Adriano da Internazionale nos seus respectivos melhores momentos. Tamanha integração foi vista, com tanta excelência, apenas um punhado de vezes: o lendário trio de Ahmad Jamal com Chuck Israels, o quinteto Clifford Brown-Max Roach, a parceria Bill Evans & Scott LaFaro & Paul Motian... Se a vocação do jazz é o diálogo secreto entre os comungantes da música, Motion é selo imprescindível da história da arte popular.
LIVE IN CHICAGO
Blue Note, 1999.
Kurt Elling é o grande cantor de jazz em atividade? Seria difícil dizer em qualquer situação, já que essa ânsia por pódio é quase uma praga entre jornalistas da arte e entretenimento. É doloroso particularmente porque como saberemos o que fazem, no momento, os vocalistas da nossa geração?
Mas é possível dizer, sem medo de errar, que poucos cantores têm obra tão regular. Eu ouvi uma gravação de Elling numa coletânea da Blue Note. Fui pego imediatamente! O ataque, a qualidade expressiva da interpretação, com uma sutileza e humor recônditos que pareciam ter desaparecido com Sinatra. E a voz aveludada, as notas distribuídas em falso desalinho, o tom deslumbrante nas baladas (como Johnny Hartman!).
Daí por diante fui procurando, detectando, ameaçando, seqüestrando... até que completei a coleção de Kurt Elling. E descobri que ele também é bom em escolher repertório, além de corajoso compositor e arranjador. Lembro de uma noite morna pelas ruas de Ponta Grossa, na recém-finalizada adolescência. Eu, Sílvio, Gelson Biscaia, Carlos Ikeda e Maycon Henneberg, amigos de infância, a bordo do Chevette marrom que foi o primeiro bólido do último na lista. Ouvíamos “A Love Supreme” com devoção quase religiosa. E refaço com perfeição o pensamento que me passou: “poderia haver uma versão com letra de Resolution”, a segunda e excitante parte daquela obra-prima de Coltrane.
Pois Kurt Elling gravou essa versão!
E nem é do disco que considero sua obra-prima, Live in Chicago.
Pense num disco com três grandes saxofonistas tenor – Von Freeman, Eddie Johson e Ed Peterson -, um quarteto acompanhante afiadíssimo e a colaboração de Jon Hendricks, grande scat-singing. E o repertório: “My Foolish Heart” melhor ainda que a versão Bill Evans-Tony Bennett, “Night Dreamer”, de Wayne Shorter, “Going to Chicago” e até “Smoke Gets in Your Eyes”.
O final, no entanto, é o que dá sentido à palavra “eletrizante”. Na tradição da música+poesia beatnick, herdada principalmente de Mark Murphy, Elling conta uma história “ilustrada” pelos saxofonistas convidados. O tom segue num crescendo emocional tão intenso que ao ouvirmos as notas graves marteladas ao piano e os sopros se ajustando ao uníssono, os arrepios tomam os braços e seguem direto ao estômago, como um soco.