FANTASMAS! Parte 2: tira o caminhão!
Duas semanas depois, um novo divertimento.
Cobria, todos os dias, a já desgastada paralisação de motoristas de cargas na praça de pedágio em São Luiz do Purunã. Chegava pela manhã, recortava uns depoimentos, ouvia as reivindicações dos caminhoneiros, as reclamações sobre o pedágio, as queixas sobre as condições das estradas. Conversava com os funcionários da praça, buscava a versão da PM, do governo, o pacote.
Mas, no dia seguinte, minha matéria saía editada conforme um suposto “manual de redação” do matutino. O jornal tinha um manual de redação como a Inglaterra tem Constituição. Por respeito ao “costume”, o editor solapava tudo que parecesse desagradável para as administradoras do pedágio, para o governo que financiava a privatização das estradas e para a Polícia Rodoviária – que sempre me parava nas rodovias e liberava sem medir a infração, já que o jornal “é um grande parceiro nosso”.
Em nome de “manter uma distância prudente”, “não sugerir através de conotações irresponsáveis” e da velha “imparcialidade”, as reportagens eram publicadas acusando os motoristas de baderneiros e injustos, quando não insanos.
Houve fonte indicada pelo editor (“Precisa ouvir todos os lados!”) que aventasse uma sinistra ligação entre as Farc e as lideranças dos motoristas. Em certo momento da história recente do país, a paranóia direitista via as forças revolucionárias colombianas em tudo: no PT, no MST, nos sindicatos, "em certos setores da Igreja" e quem sabe até nas aulas de culinária.
E, apesar de todas as mudanças realizadas nas reportagens, a edição mantinha a minha assinatura.
Na manhã seguinte, eu enfrentava centenas de olhares recriminadores e o conseqüente silêncio dos manifestantes. “Ninguém dá entrevista para a Globo nem para o teu jornal” era a declaração mais longa que eu conseguia.
No meio da semana, no dia em que a tensão era quase palpável, eu circulava entre os caminhões, articulando uma explicação “prudente” para a edição tendenciosa das matérias, quando ouvi as sirenes. Começaram todas juntas e, em poucos segundos, as pomposas viaturas do Centro de Operações Especiais, negras como o batmóvel, cantaram os pneus em volta da manifestação. Os cães pulavam por todos os lados e, armados de escopetas, os policias berravam como se estivessem estourando uma célula da Al Qaeda.
“Tira o caminhão!”
E os inimigos da corporação, homens de meia idade barrigudos e suados, com as camisas abertas, protegidos por um elmo de pelos que saíam da virilha e encontravam, indistintos, os chumaços do peito, corriam assustados para suas cabines, quase todos sufocando a coragem e a ousadia por causa das fotos de família no painel.
“Tira o caminhão!”
Eu me perguntava distraído se o fotógrafo havia registrado os dentes dos cães, os motoristas levantando as calças, a grelha improvisada sendo pisoteada. Um policial, tão ou mais jovem que eu, cheio de fúria ensaiada nos olhos, empunhando sua arma com visível excitação, virou repentinamente para mim, deu dois passos “de soldado” e gritou como se fosse acometido de inusitada surdez: “Tira o caminhão!”
Não sou a pessoa mais prudente do mundo. Sou orgulhoso, sangue italiano e alemão, escorpiano, tomo muito café, talvez viciado em sexo. Há muita adrenalina sendo incendiada.
“Não vou tirar caminhão nenhum!”
O rapaz enrubeceu. O cão dentuço que lhe servia de parceiro acompanhou: pareciam o velho Salamano e seu vira-latas, confundindo-se pela convivência. Minha imaginação chegou a ouvir o clique da arma sendo engatilhada (eu nem sei se escopetas são “engatilhadas”).
“Não brinque comigo! Tira o caminhão”.
Naquele momento, minha lucidez voltou: “Eu sou jornalista!”
“Cadê a identificação?”
Cadê? Tateava a calça e a camisa e repentinamente temi que o sujeito suspeitasse de uma arma escondida. Finalmente: ali no primeiro compartimento da calça, misturado a duas notas de um real, meu crachá – escondido por causa dos ânimos da outra metade da manifestação. Mas quando achei que o exu tinha ido embora do meu corpo... peguei o documento e coloquei entre os olhos do soldado, pressionando com o indicador sobre seu nariz. O cano gelado tocou minha pele pela primeira vez. O cão expelia a baba na minha perna. Eu pensava num testamento.
Então aparece o tenente-coronel, o notável comandante! Grande e feio como o John Rambo, talhado à feição de mariner dos filmes xenófobos americanos. E voz de donzela. Softly as in a morning sunrise. Ele era o sujeito certo para o cargo: amendrontador na aparência, cheio de etiquetas com imprensa e políticos.
“Calma, senhor jornalista”, sob sua sombra, eu imaginava uma biruta tremulando suave, alheia ao tornado, “só queremos que o senhor se afaste um pouco do conflito para protegê-lo. Em seguida, teremos o maior prazer em oferecer todas as informações sobre a operação”.
Proteger-me?
“É melhor ficar um pouco à distância... esses agitadores de sindicato podem ser violentos”.
Ah, o glamour!
Preciso de férias, foi tudo o que eu pensei durante a semana.
Mas não haveria. Precisava encontrar outra forma para relaxar. Eu teria que me divertir do único jeito que eu podia: trabalhando.
E veio a idéia, acalentada desde que entrei no jornal.
Voltava de uma matéria sobre miséria no campo e ofereci carona para o presidente de uma associação de lavradores. Ele deve saber, pensei, gente do campo sempre sabe dessas coisas: “Seu Antônio, conhece alguma história de casa mal-assombrada no meio do mato?”
“Uma porção”, ele disse, relaxando a sisudez campesina, “mas esses dias eu ouvi uma que é de deixar qualquer um arrepiado...”
Ah, o paraíso. A pauta do desafogo. Sempre adorei histórias de fantasmas. Criar um “guia turístico” das fazendas assombradas do Paraná era meu projeto mais excitante.
“Fica lá na Colônia Adelaide”, se animou Antônio, “Faz um ano que ninguém entra na casa por causa dos gemidos”.
Daí o itinerário. A Colônia Adelaide é distrito de Ipiranga, cidade a uns 20 quilômetros de Ponta Grossa, cabeça de região. No mesmo dia, convenci o editor da “importância” da pauta, disse que era uma boa solução para a escassez do final de semana. Na manhã seguinte, eu, o fotógrafo e o motorista cruzamos os Campos Gerais sob um céu cinza e o vento sibilante do segundo planalto paranaense.
continua
*A imagem do post é uma reprodução da pintura a óleo "Ema", do alemão Gehard Richter. A obra é de 1966. Outros quadros de Richter são até mais impressionantes como exemplo desse realismo obcecado de muitos artistas contemporâneos. "Betty", por exemplo, é uma pintura de 1988 que sempre mostro em aula para testar o diagnóstico dos alunos. Quase invariavelmente, a resposta é "fotografia".
Cobria, todos os dias, a já desgastada paralisação de motoristas de cargas na praça de pedágio em São Luiz do Purunã. Chegava pela manhã, recortava uns depoimentos, ouvia as reivindicações dos caminhoneiros, as reclamações sobre o pedágio, as queixas sobre as condições das estradas. Conversava com os funcionários da praça, buscava a versão da PM, do governo, o pacote.
Mas, no dia seguinte, minha matéria saía editada conforme um suposto “manual de redação” do matutino. O jornal tinha um manual de redação como a Inglaterra tem Constituição. Por respeito ao “costume”, o editor solapava tudo que parecesse desagradável para as administradoras do pedágio, para o governo que financiava a privatização das estradas e para a Polícia Rodoviária – que sempre me parava nas rodovias e liberava sem medir a infração, já que o jornal “é um grande parceiro nosso”.
Em nome de “manter uma distância prudente”, “não sugerir através de conotações irresponsáveis” e da velha “imparcialidade”, as reportagens eram publicadas acusando os motoristas de baderneiros e injustos, quando não insanos.
Houve fonte indicada pelo editor (“Precisa ouvir todos os lados!”) que aventasse uma sinistra ligação entre as Farc e as lideranças dos motoristas. Em certo momento da história recente do país, a paranóia direitista via as forças revolucionárias colombianas em tudo: no PT, no MST, nos sindicatos, "em certos setores da Igreja" e quem sabe até nas aulas de culinária.
E, apesar de todas as mudanças realizadas nas reportagens, a edição mantinha a minha assinatura.
Na manhã seguinte, eu enfrentava centenas de olhares recriminadores e o conseqüente silêncio dos manifestantes. “Ninguém dá entrevista para a Globo nem para o teu jornal” era a declaração mais longa que eu conseguia.
No meio da semana, no dia em que a tensão era quase palpável, eu circulava entre os caminhões, articulando uma explicação “prudente” para a edição tendenciosa das matérias, quando ouvi as sirenes. Começaram todas juntas e, em poucos segundos, as pomposas viaturas do Centro de Operações Especiais, negras como o batmóvel, cantaram os pneus em volta da manifestação. Os cães pulavam por todos os lados e, armados de escopetas, os policias berravam como se estivessem estourando uma célula da Al Qaeda.
“Tira o caminhão!”
E os inimigos da corporação, homens de meia idade barrigudos e suados, com as camisas abertas, protegidos por um elmo de pelos que saíam da virilha e encontravam, indistintos, os chumaços do peito, corriam assustados para suas cabines, quase todos sufocando a coragem e a ousadia por causa das fotos de família no painel.
“Tira o caminhão!”
Eu me perguntava distraído se o fotógrafo havia registrado os dentes dos cães, os motoristas levantando as calças, a grelha improvisada sendo pisoteada. Um policial, tão ou mais jovem que eu, cheio de fúria ensaiada nos olhos, empunhando sua arma com visível excitação, virou repentinamente para mim, deu dois passos “de soldado” e gritou como se fosse acometido de inusitada surdez: “Tira o caminhão!”
Não sou a pessoa mais prudente do mundo. Sou orgulhoso, sangue italiano e alemão, escorpiano, tomo muito café, talvez viciado em sexo. Há muita adrenalina sendo incendiada.
“Não vou tirar caminhão nenhum!”
O rapaz enrubeceu. O cão dentuço que lhe servia de parceiro acompanhou: pareciam o velho Salamano e seu vira-latas, confundindo-se pela convivência. Minha imaginação chegou a ouvir o clique da arma sendo engatilhada (eu nem sei se escopetas são “engatilhadas”).
“Não brinque comigo! Tira o caminhão”.
Naquele momento, minha lucidez voltou: “Eu sou jornalista!”
“Cadê a identificação?”
Cadê? Tateava a calça e a camisa e repentinamente temi que o sujeito suspeitasse de uma arma escondida. Finalmente: ali no primeiro compartimento da calça, misturado a duas notas de um real, meu crachá – escondido por causa dos ânimos da outra metade da manifestação. Mas quando achei que o exu tinha ido embora do meu corpo... peguei o documento e coloquei entre os olhos do soldado, pressionando com o indicador sobre seu nariz. O cano gelado tocou minha pele pela primeira vez. O cão expelia a baba na minha perna. Eu pensava num testamento.
Então aparece o tenente-coronel, o notável comandante! Grande e feio como o John Rambo, talhado à feição de mariner dos filmes xenófobos americanos. E voz de donzela. Softly as in a morning sunrise. Ele era o sujeito certo para o cargo: amendrontador na aparência, cheio de etiquetas com imprensa e políticos.
“Calma, senhor jornalista”, sob sua sombra, eu imaginava uma biruta tremulando suave, alheia ao tornado, “só queremos que o senhor se afaste um pouco do conflito para protegê-lo. Em seguida, teremos o maior prazer em oferecer todas as informações sobre a operação”.
Proteger-me?
“É melhor ficar um pouco à distância... esses agitadores de sindicato podem ser violentos”.
Ah, o glamour!
Preciso de férias, foi tudo o que eu pensei durante a semana.
Mas não haveria. Precisava encontrar outra forma para relaxar. Eu teria que me divertir do único jeito que eu podia: trabalhando.
E veio a idéia, acalentada desde que entrei no jornal.
Voltava de uma matéria sobre miséria no campo e ofereci carona para o presidente de uma associação de lavradores. Ele deve saber, pensei, gente do campo sempre sabe dessas coisas: “Seu Antônio, conhece alguma história de casa mal-assombrada no meio do mato?”
“Uma porção”, ele disse, relaxando a sisudez campesina, “mas esses dias eu ouvi uma que é de deixar qualquer um arrepiado...”
Ah, o paraíso. A pauta do desafogo. Sempre adorei histórias de fantasmas. Criar um “guia turístico” das fazendas assombradas do Paraná era meu projeto mais excitante.
“Fica lá na Colônia Adelaide”, se animou Antônio, “Faz um ano que ninguém entra na casa por causa dos gemidos”.
Daí o itinerário. A Colônia Adelaide é distrito de Ipiranga, cidade a uns 20 quilômetros de Ponta Grossa, cabeça de região. No mesmo dia, convenci o editor da “importância” da pauta, disse que era uma boa solução para a escassez do final de semana. Na manhã seguinte, eu, o fotógrafo e o motorista cruzamos os Campos Gerais sob um céu cinza e o vento sibilante do segundo planalto paranaense.
continua
*A imagem do post é uma reprodução da pintura a óleo "Ema", do alemão Gehard Richter. A obra é de 1966. Outros quadros de Richter são até mais impressionantes como exemplo desse realismo obcecado de muitos artistas contemporâneos. "Betty", por exemplo, é uma pintura de 1988 que sempre mostro em aula para testar o diagnóstico dos alunos. Quase invariavelmente, a resposta é "fotografia".