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Victor E. Folquening escreve, você lê e diz alguma coisa

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Grupo de gestores para soluções estratégicas nas Faculdades Integradas do Brasil

sexta-feira, outubro 13, 2006

DÁLIA NEGRA!



"Meu primeiro golpe decepou a caveira do marinheiro, o segundo rasgou a frente
da sua túnica e arrancou o torso fora do resto do esqueleto. As pernas estavam
emigalhadas em pedaços; continuei cavando embaixo delas na areia pura com brilho
de mica. Depois, ninhos de vermes, vísceras, um vestido de crinolina coberto de
sangue, areia, ossos esparsos e nada - então uma pele rósea queimada de sol e
sobrancelhas loiras cobertas de cicatrizes que pareciam familiares. Lee estava
sorrindo como a Dália, com vermes rastejando na boca e nos buracos onde seus
olhos costumavam ficar".

(Dália Negra, de James Ellroy - RJ: Record, 2000. p. 306).


Sempre evito comparar livros com filmes adaptados. Fãs de certa obra literária geralmente ficam frustrados com a versão para o cinema, na maior parte das vezes porque procuravam sentir algo semelhante àquilo que lhes percorreu o espírito durante a leitura.

É óbvio que isso não é possível, pois um livro lida com imaginação, "diálogo" pessoal e direto com o leitor, e correr os olhos sobre as letras é um ato solitário - o que nos faz confundir, muitas vezes, a leitura com alguma atividade espiritual, seja para libertar ou agrilhoar.

O cinema não é pior nem melhor. Mas é óbvio que o melhor filme precisa ser exatamente o contrário de um livro. Ele lida com imagem e som, com texturas, com edição e movimento. Você não estaciona em uma imagem (pelo menos não é para ser assim) e "reflete" antes de prosseguir. O tempo de um filme é fixo, e geralmente é muito mais curto do que o de um livro.

É por isso que bons livros podem dar filmes muito ruins e, o que é mais freqüente, maus livros se tornarem ótimos filmes. Às vezes, o problema da primeira categoria é justamente a lealdade à obra original.

Há centenas de exemplos dos dois casos, mas basta a gente se lembrar do modorrento Crônica de uma certa Nova Iork (2000), de Stanley Tucci, que tornou o clássico jornalístico O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, em duas horas de chatice insuportável. Por outro lado, é preciso se admirar Kubrick por ter metamorfoseado o tolo O Iluminado (1980), de Stephen King, em um filme interessante, no mínimo.

Não dá para negar que, às vezes, a fidelidade à obra original dá certo. Parece ter sido o caso de Garotos Incríveis (2000), dirigido por Curtis Henson com lealdade comovente ao espírito da obra assinada por Michael Chabon (aqui e ali falam da versão cinematográfica de As Incríveis Aventuras de Kavalier & Klay. Alguém sabe alguma coisa? Devemos temer?).

Enfim, uma obra de arte é tanto mais fascinante quanto mais difícil fica vê-la em outro mecanismo senão aquele em que foi concebida.

Tudo isso para dizer que o livro Dália Negra é melhor que o filme Dália Negra.

Não porque a película de Brian de Palma teria sido incapaz de captar a "atmosfera" do clássico policial de Ellroy. Simplesmente porque estamos falando de um grande livro e um filme fraco.

A obra é Ellroy é assustadora, violenta, imoral, vulgar e deliciosa de se ler. Os julgamentos de "valores" são cínicos - não porque Ellroy faça o tipo intelectual niilista. É por sua habilidade em entreter, mesmo na descrição do sofrimento. A coisa toda já começa dolorida. Leia a dedicatória do livro:

Para Geneva Hiliker Ellroy

1915-1958

Mãe,

vinte e nove anos depois,

esta despedida de sangue.

É bem significativa. Aos dez anos, Ellroy descobriu o corpo da mãe enforcada com uma meia de seda. O assassino teria sido um dos muitos amantes de Geneva. A tragédia empurrou de vez o garoto à sarjeta. Foi preso diversas vezes e o vício em tóxicos levou o antes comportado James à mendicância.

Antes de tudo se consumar em miséria e infortúnio, veio Elizabeth Short, a Dália. James conheceu a história em livros baratos sobre crimes insolucionáveis. A menina realmente existiu, foi cortada e rasgada, tal qual no livro e no filme. Até hoje ninguém sabe o que aconteceu de fato. Durante 29 anos, James Ellroy leu, investigou e sonhou com Elizabeth.

Até que, aos 39, resolveu misturar as memórias sobre sua mãe com hipóteses a respeito do assassinato da Dália Negra. Seu romance de estréia acabou se tornando um dos mais importantes livros policiais americanos de todos os tempos.

O que nos lembra que é sempre bom escrever sobre o que se conhece.

E algo que explica bem porque James Ellroy ficou tão furioso com a adaptação feita por De Palma.

Há belos enquadramentos, ótimos planos sequência, uma linda e artificial fotografia, excelente trilha sonora. Mas simplesmente não há assombração da mãe. Não há dor de verdade.

Veja bem, a sra. Geneva não é personagem do livro.

Mas as distâncias entre os protagonistas, a ação, o tempo... principalmente o tempo em que Lee Blanchard desaparece, deixando finalmente o espaço para que o sr. Gelo e a ex-prostituta Kay se engalfinhem... esses elementos é que tornam a narrativa literária de Dália Negra uma experiência relevante.

A mãe de James Ellroy derrama um luto impronunciável nas quase cem páginas em que o sr. Fogo está desaparecido. O parceiro carrega a angústia e a culpa até ir ao México para literalmente desenterrar a verdade.

Na cena fatal do Sr. Fogo, Brian de Palma parece criar um estranho caso de paródia de si mesmo parodiando Hitchcock. É uma mistura de Vestida para Matar, Olhos de Serpente e Os Intocáveis. Bucky Bleichert contempla a queda do parceiro! No tempo de um filme, não há meios para que soframos por culpa ou inoperância. Então, o maior dos pecados: ele diz que se sente culpado! Má literatura tentando remediar um filme que se esforça para ser cinematográfico.

Mas até aí tudo bem. Tentemos não comparar e conseguiremos nos divertir com a plástica caprichada de Brian de Palma. Só que a cena em que a trama se resolve é quase constrangedora. Fiona Shaw se esmera para dar um toque "brilhante" de mulher drogada a Ramona e tudo fica barulhento demais. Ela arreganha a boca torta e conta tudo num ritmo de vilão que se entrega no último segundo.

Quem sabe, para aproveitar bem, devêssemos cortar o filme pela metade, drená-lo, e deixar a cabeça sorridente de fora. Aproveitaríamos só os órgãos genitais.

9 Comments:

Blogger Henrique Schaefer said...

Não li o livro, mas não gostei do filme. É um pouco previsível, talvez porque a temática já seja bem conhecida e explorada no cinema. Mas a fotografia é bem legal.

17/10/06 20:29  
Blogger Jean-Philip said...

Victor, leu "Meus Lugares Escuros"? Achei que foi o melhor livro do James.

18/10/06 17:54  
Anonymous Anônimo said...

Henrique, tente ler o Dália. É ótimo. Eu achei as cenas de interiores muito artificiais no filme. Parecia que a fotografia externa e a interna não pertenciam ao mesmo produto.
Jean: eu achei "Meus Lugares Escuros" impressionante. É muito diferente do Dália, mas é difícil escolher entre eles. Leu "L.A. Confidential"?

26/10/06 08:41  
Anonymous Anônimo said...

Antes de tudo : como assim "O Iluminado" é um "filme interessante, no mínimo"? Interessante? caramba, aquilo é inegavelmente uma obra-prima do cinema -do gênero terror ou não.
Puxa vida. Você gasta várias linhas dizendo que não se pode comparar um livro com um filme. Muito legal. Mas, em determinado momento a frase "tudo isso pra dizer que o livro Dália Negra é melhor que o filme". Isso não é comparar? Cinema e literatura são duas formas de arte distintas, portanto, devem analisadas como tal. Dane-se se o De Palma não capturou a atmosfera do livro de Ellroy. O que importa é se ele criou uma atmosfera própria - o que sem dúvidas ele conseguiu. Ah, eu outra coisa: De Palma parodiando a si mesmo parodiando Hitchcock? Essa história de que o De Palma é um mero copiador de Hitch é coisa de crítico americano de cinema do rotten tomatoes...além disso, aquela sequência é deslumbrante. É cinema puro hehe. Aliás, é o que faz De Palma. Contar histórias por meio de imagens. Isso sim é um "hitchcockianismo" incansávelmente chupado por De Palma.

"Um filme que se esforça para ser cinemtográfico"??????????????
Você realmente viu Dália Negra? Falar isso de De Palma é o mesmo que dizer que Chaplin, em Luzes da Cidade, se esforça pra ser engraçado, por exemplo. Não gostar do roteiro - que, como todos sabem,para De Palma, deve ser uma mera desculpa para as imagens e não o contrário - das interpretações, etc, até tudo bem. Mas, dizer que Dália Negra se esforça pra ser cinematográfico é uma afirmação que beira a loucura...haha (essa foi boa hein?)
Pra terminar, vou ter que citar um trecho de uma crítica que está na contracampo:" Em Dália Negra, Brian De Palma faz o que sabe: cinema puro. Para os que não gostam, resta a opção de ler o livro".
É isso aí.

1/11/06 11:13  
Blogger Escritório de Gestão Integrada said...

Olá, Wellington, tudo bem?
Sobre "se esforça para ser cinematográfico", a ênfase deve ir para "se esforça".
Veja, eu gosto do De Palma (apesar de mais da metade de seus filmes, especialmente aquele em que o Tim Robbins sai voando no espaço e dizendo: adeus, amigos...), e também acho que cinema e literatura são bem diferentes. Aliás, eu pensei que tinha dito isso nos primeiros parágrafos. Me desculpei antes de comparar - de fato, preferia falar do livro e usei o filme como gancho.
Mas reduzir o cinema a movimentos de câmera também é uma idéia conservadora. Não dá para fingir que Dália Negra é "cinema alternativo" - De Palma se presta a transitar entre o cinema comercial e sua "estética particular", na minha opinião sacrificando a qualidade das duas coisas. O final é apressado e resolvido de forma, desculpe dizer, amadora. Colocar a solução de tudo na fala de um personagem é algo que o seu Kubrick não aprovaria, não é mesmo?
Ainda mais num filme de cineasta tão, ahn, "cinematográfico", como De Palma.
O Iluminado é bem razoável, não disse o contrário. Sou fã. Mas também chamar de obra-prima inegável é questão de fé. Eu não sou do tipo que acredita. Muito menos no sujeito que dirigiu De Olhos bem Fechados.

1/11/06 13:44  
Anonymous Anônimo said...

Bem, se o Kubrick fosse meu acho que eu teria dirigido Lolita no lugar dele e transformado aquilo numa pornografia maravilhosa. Ou eu o teria vendido e com a grana feito um filme sobre como é ter o Kubric e depois vendê-lo. Daria um bom filme, ainda mais se eu enchesse-o de movimentos virtuosos de câmera...
Não, claro que cinema não é só isso. Fosse assim, Soy Cuba seria a maior obra cinematográfica de todos os tempos (se bem que...).
reduzir De Palma a apenas movimentos de câmera é, denovo, coisa de crítico americano apressado, daqueles que vêem dois filmes ao mesmo tempo, tal qual o nosso amigão Rubens Edwald Filho. O De Palma é muito mais que isso e não é preciso muito esforço pra perceber. Claro que ele tem filmes muito ruins na sua filmografia - Missão Marte como exemplo maior. Mas eu não estou "defendendo-o" (pelo menos não era a minha intenção hehe) e sim estou a favor da visão dele - e é claro da do Hitchcock- sobre o cinema.
Eu não tentei fingir que Dália Negra é um filme alternativo. É um filme de estúdio, feito por incomenda, mas que, é isso é o seu grande mérito, é extremamente autoral.
Ah sim, o final é bem apressado e amador (na verdade parece até uma piada), o que só contribui para o clima de irrealidade, de sonho, etc, que o Palmão (cansei de escrever De Palma) buscou.
Mas é aquela coisa (denovo) do cinema puro. Quem não aprecia vai achar ridículo, que aprecia vai achar o máximo...

Ah, no fim das contas é legal essa discuçãozinha...
abraço

2/11/06 01:49  
Anonymous Anônimo said...

Em tempo, Wellington. Adoro o Hitchcock. Nesse caso, talvez, uma questão de fé.
Acho também que, às vezes, sou cruel demais com o De Palma.
Blow Out já vale todo o resto. E eu curti Femme Fatalle, ao contrário, por exemplo, da puritana crítica norte-americana.
Abração.
Victor.

2/11/06 11:09  
Anonymous Anônimo said...

Aliás, Wellington, você viu o Miami Vice?

2/11/06 11:34  
Anonymous Anônimo said...

Ah, se você gosta de Hitchcock, de Blow Out e Femme Fatale então tá tudo certo. Pensei que você era preconceituoso quanto a esse tipo de cinema.
Eu não vi Miami Vice. Legal na tua crítica aquele lance do sexo lá. Também não sou muito fã do Michael Mann, mas acho bem interessante ele filmar em digital (você acha que logo Hollywood vai abandonar película?). Você falou que ele te lembra o Soderberg. Eu não concordei muito não haha. Pra mim ele lembra mais o Iñarritú e até o Meireles. Mas é que eu também não vi muita coisa do Soderbergh (que eu prefiro, em relação ao Mann...Bubble é um filme incrível).
É isso aí Victor!
abraço

2/11/06 13:01  

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