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quinta-feira, janeiro 18, 2007

UM DOS GÊMEOS SEMPRE É MAIS DOCE!


Aquela cidade não é pequena, mas conta com apenas um policial.
E ele representa toda a força de segurança e repressão.
Por outro lado, os habitantes se preocupam com um único criminoso. É um sujeito traiçoeiro, jamais preso por mais do que dez minutos. Mesmo assim, o tamanho do município quase pulveriza suas ações. É uma questão de azar histórico ser surpreendido pelo mau elemento, algo tão raro que chega mesmo a ser um privilégio. A não ser, é claro, nos casos de latrocínio, estupro, tortura gratuita, seqüestro e castração.
Há outro item curioso nessa pitoresca cena policial: detetive e bandido são gêmeos univitelinos. Iguais em tudo, até na curiosa cicatriz que cruza a sobrancelha direita. Ninguém sabe muito sobre o passado dos dois, mas aparentemente foram submetidos à mesma educação, o que os levou a adotar roupas parecidas, modos idênticos de se portar à mesa e preferências artísticas complementares – não obstante os caminhos morais divergentes, sem dúvida germinados no mais profundo de suas personalidades opostas.
O leitor já deve desconfiar que, na verdade, não se tratam de irmãos gêmeos, mas de uma mesma pessoa que se faz passar por seu duplo, buscando assim, messiânico, um equilíbrio entre o bem e o mal, o yin e o yang, o lumpullis abbos e o tannacklos brapta. Ou que se esmera em garantir o próprio emprego numa cidade isenta de criminalidade.
Engana-se! Realmente são gêmeos e, na eventualidade de um linchamento, no caso sempre possível de a população, armada de archotes e ancinhos, encurralar num beco os dois protagonistas e se debater na dúvida de quem seria o verdadeiro vilão, há apenas uma forma de verificar a identidade de um e outro.
O esperma do bandido tem gosto de batata doce.
Tanto que os gêmeos são conhecidos menos pelos seus nomes de batismo e mais pelos apelidos arquetípicos. Um deles é O Policial. O outro, Batata Doce. No cartaz de recompensa fixado no poste da pracinha centenária, eternamente balouçante ao vento como um envelope mal colado, podemos ler: “Procura-se Batata Doce. Em tudo se assemelha ao irmão, heróico homem da Lei, que, no entanto, goza como todas as pessoas normais”. É um curioso cartaz sem foto, já que as autoridades municipais temem a compreensiva confusão e preferem evitar o constrangimento de denunciar justamente o homem mais admirado da cidade.
Naquela tarde ensolarada, Batata Doce foi visto no telhado da casa episcopal. A moça apontou, logo depois de um grito estridente. Ele levantou a mão e acalmou os passantes: “Ei, sou eu, o Policial. Estou consertando o telhado do Bispo”. Lá embaixo todos riram e continuaram seus afazeres, não sem antes admirar a bela arquitetura mediterrânea do casarão, ainda mais alvo contra o céu de brigadeiro. Assim que a rua ficou tranqüila, o semblante simpático, tão simpático que até esconde a misteriosa cicatriz, se espremeu e tomou os contornos sensuais do gêmeo malvado. Mais uma telha e... Batata Doce conseguiu invadir o sótão da casa onde dorme o venerável religioso.
Adaptando-se ao escuro, pouco ajudado pela minúscula passagem no telhado, Batata Doce tateou ansioso. Tenso, pois seu coração está intumescido de rancor. O homem mais perigoso da cidade veio com um propósito sádico. Ele quer se vingar. E tem idéias muito cruéis de como dará cabo do padre que tantas vezes lhe condenou ao inferno. Sopra um mantra como uma correnteza sibilante: “Hoje você vai saber qual é o doce mais doce que batata doce, seu filho de uma puta”.
Desceu pela clarabóia do banheiro principal. Ágil como um mangusto, se esgueirou pelos móveis suntuosos, atravessou o corredor calçado pelo piso em mosaico e colocou-se de prontidão ao lado da porta do escritório. Pela janelinha de vidro canelado, reconheceu o vulto alto e empertigado do Bispo acomodando-se na escrivaninha espartana. Levou as mãos à braguilha e, como num gesto simbólico de tocaia, abriu o primeiro botão da calça de brim. Conhece bem esta porta – nos seus pesadelos, ela sempre emite a mesma música daqueles dias da infância, um rangido uniforme e agudo. O próprio Bispo, então Padre, ensinou na prática como evitar o som inconveniente: é só forçar para baixo, cuidando para que o estalido da lingüeta não denuncie a aventura.
Aqui está, suave, a revelação da porta, vencida até na ardilosa superfície escorregadia da maçaneta, incolor sob o ácido úrico deixado ao longo das décadas pelas mãos do santo homem.
Não há mais necessidade de tanto cuidado. O Bispo volta o perfil aquilino para trás e fixa o rosto limpo de expressão no corpo trêmulo de Batata Doce.
“Vim aqui porque agora é minha vez, padre”.
O peso no ombro do algoz revela um terceiro personagem.
“Você não vai fazer nada, irmão!”
O Policial, que estava no porão consertando o encanamento do Bispo, ouviu a voz de seu duplo e se apressou em salvar o dia.
“Não se meta, mano. Isso é entre eu e o canalha ali”.
“Nenhum trauma justifica teu comportamento!”
Batata Doce, quase sem mexer o quadril, girou o corpo com o punho fechado até afundar os dedos no abdômem do irmão. “O que você sabe sobre isso?” O Policial ergueu a face distorcida pela dor e, no impulso das pernas dobradas, lançou-se ao pescoço do gêmeo. Logo eram uma mistura de carne e panos, roupas iguais até no encontro imprevisto.
O Bispo foi até a janela e gritou por socorro. Por sorte, a pequena Filha do Prefeito passava por ali. A garota correu até o galpão, onde o pai fazia a sesta, e convenceu-o a intervir, apesar do horário inconveniente. Vestir-se era complicado, dada a urgência da situação e da peculiaridade do político: sofria de um gigantismo tão acentuado que não dispunha de muitas roupas apropriadas; daí seu costume de andar nu pela cidade - atração que os cidadãos já haviam assimilado, mas que ainda provocava a ira da ciumenta Filha.

Embora um tanto avexado pela severa repreensão da filha, o Prefeito andou pelado até a casa episcopal e tirou os gêmeos pela janela. Lá de cima, o Bispo explicou o ocorrido: “Eu estava prestes a ser assaltado por esse monstro, quando o irmão me salvou!”
Eis que nos deparamos com a situação sempre imaginada pelos moradores da cidade: qual é qual, agora que arfam, arranhados e arroxeados, na calçada? Imediatamente, ambos apontam o indicador para o outro e exclamam, em uníssono: “Prendam-no!”
Bem, bem. Sabemos a única forma de resolver o problema – e os gêmeos nunca deixaram de ter ciência disso, tanto que, antes de qualquer menção, já desabotoavam as calças e examinavam, curiosos, a boca murcha do Bispo, os pequenos lábios da Filha e a caverna misteriosa no rosto do Prefeito.
O Prefeito soltou um longo suspiro e, cuidadoso com sua voz tonitruante, explicou a novidade: “Não tive tempo de avisá-lo, Policial (o alcaide olhava estrategicamente para o vazio), mas acho que resolvemos o problema da identificação”. Assobiou e, em poucos segundos, um ajudante trazia, a muito custo, dois cães encrespados, rosnando feito motosserras enquanto cuspiam a saliva lubrificante de seus dentes afiados como mandíbulas de tubarão.
“Cães Experimentadores!”

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

você é um doente, cara. dos melhores.

continue assim.

Vilmar.

19/1/07 15:20  
Anonymous Anônimo said...

Valeu, Vilmar Mitex!

19/1/07 17:52  
Anonymous Anônimo said...

Eles causavam a confusão propositalmente. Tudo combinado.
E porque o gêmeo mal é o que tem a tão peculiar característica doce?

20/1/07 12:15  
Anonymous Anônimo said...

Gostei das Fotos...

21/1/07 21:05  
Anonymous Anônimo said...

Camila, acho que o gêmeo malvado tem esse "atrativo" porque a subversão é sempre mais hedonista.
Então, Tatu, precisa ver as outras que fiz hoje! Vou usar no próximo conto!

21/1/07 23:31  
Anonymous Anônimo said...

“Hoje você vai saber qual é o doce mais doce que batata doce, seu filho de uma puta”.

Mesmo enxugada, suspeito que toda trama surgiu a partir desse velha interiorana frase..a não ser o trecho "seu filho da puta" que, eu diria, amarga a batata doce.

Gostei.

22/1/07 12:05  
Anonymous Anônimo said...

ahahah. Dani, certas expressões valem um livro. Vou escrever um romance de mil páginas com a expressão: "se entregar para os paraguaios". É muito boa.

22/1/07 13:02  

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